Como os matadouros e Henry Ford influenciaram Hitler na idealização dos campos de concentração

Matadouros de Chicago serviram como referência para os campos de concentração (Foto: NPR)


Em 2002, o escritor Charles H. Patterson publicou o livro Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust (“A eterna Treblinka: nosso tratamento aos animais e o holocausto”, em tradução livre), onde aborda como os matadouros serviram de referência para a construção dos campos de concentração durante o regime nazista.

Tudo começou quando o empreendedor Henry Ford decidiu visitar um matadouro em Chicago. “Os animais abatidos, suspensos de cabeça para baixo em uma corrente móvel ou transportador, passam de trabalhador para trabalhador, e cada um deles executa algum passo particular no processo”, registrou Ford em sua autobiografia Minha Vida e minha Obra, de 1922.

Patterson afirmou que essa experiência de Ford, que serviria de exemplo para ele implementar em suas linhas de montagem um sistema bastante avançado à época, influenciaria Adolf Hitler a seguir o mesmo caminho. A diferença é que, em vez de o ditador nazista aplicá-lo em fábricas e indústrias, ele faria isso em campos de concentração. 

“Hitler baseou todo o tratamento dado aos judeus nas linhas de produção dos matadouros dos Estados Unidos. Ele idolatrava Henry Ford, cuja inspiração para o sistema revolucionário da linha de montagem surgiu depois que ele visitou matadouros em Chicago em sua juventude. Essencialmente, Hitler construiu seus próprios matadouros substituindo animais por seres humanos”, escreveu Charles Patterson na página 72 de Eternal Treblinka.

Para o autor, isso significa que a objetificação animal durante e após a Revolução Industrial acabou facilitando também a objetificação humana, já que uma acabou por servir de exemplo para a outra. Embora ainda hoje muita gente atribua a Ford o pioneirismo na criação das linhas de montagem que simbolizam a organização racionalizada do trabalho, a verdade é que todo o trabalho desenvolvido por ele teve como pioneiros os empresários Gustavus Swift e Philip Armour, da indústria da carne. “Henry Ford ficou tão impressionado com a maneira eficiente com que os operários abatiam e desmembravam animais em Chicago, que ele decidiu contribuir com o abate de pessoas na Europa, desenvolvendo um método que seria usado pelos alemães para matar judeus”, declarou Patterson.

No livro Harvest for Hope: A Guide to Mindful Eating (“Colheita pela esperança: um guia para alimentação consciente”, em tradução livre), publicado em 2006, a escritora, primatóloga, etóloga e antropóloga britânica Jane Goodall explicou que os animais suspensos, com as pernas agrilhoadas, suas cabeças para baixo, e se movimentando de um lado para o outro, era o modelo perfeito de uma linha de produção aos olhos de Henry Ford, que buscava uma solução para a criação da ideal linha de montagem automobilística. Mais do que eficiente, a linha de produção na indústria da carne ofereceu aos trabalhadores a oportunidade de serem vistos de outra forma.

“Os animais foram reduzidos a produtos industrializados, e os operários, tornados insensibilizados, poderiam se ver como trabalhadores de linha de produção em vez de assassinos de animais. Mais tarde, os nazistas usaram o mesmo modelo de matadouro para o assassinato em massa em campos de concentração. A linha de montagem se tornou um meio para que os soldados nazistas se desconectassem da matança – vendo as vítimas como ‘animais’, e eles próprios como trabalhadores”, enfatizou Jane.

Segundo a antropóloga britânica, Henry Ford era um antissemita fervoroso que desenvolveu uma linha de montagem que serviria de base para os campos de extermínio. O empresário admirava abertamente a eficiência nazista. Hitler retribuiu a admiração. O líder alemão considerava "Heinrich Ford", um irmão de armas e manteve um retrato em tamanho real do magnata da indústria automobilística em seu escritório na sede do Partido Nazista.

De acordo com Charles H. Patterson, Henry Ford lançou uma campanha antissemita que ajudou a tornar o holocausto uma realidade. Para fundamentar essa afirmação, ele cita o jornal The Dearborn Independent, lançado por Ford no início da década de 1920. No periódico, ele publicou uma série de artigos baseados nos textos de Os Protocolos dos Sábios de Sião, um tratado antissemita que começou a circular pela Europa após a Revolução Russa de 1917.

Uma das maiores contribuições de Henry Ford ao regime nazista foi a publicação dos artigos que dariam origem ao livro O Judeu Internacional, lançado em 1920, uma obra assumidamente antissemita que teve papel fundamental na formação da ideologia nazista. Patterson revelou que Theodor Fritsch, um dos primeiros apoiadores de Hitler, foi um dos principais divulgadores do livro de Ford.

“Graças a uma campanha publicitária bem financiada e ao prestígio do nome Ford, O Judeu Internacional foi extremamente bem-sucedido. […] Encontrou sua audiência mais receptiva na Alemanha, onde ficou conhecido como The Eternal Jew ("O judeu eterno"). Ford era extremamente popular na Alemanha. Quando sua autobiografia foi comercializada lá, virou imediatamente o best-seller número um do país. No início da década de 1920, o livro se tornou a bíblia do antissemitismo alemão, com a editora de Fritsch editando seis edições entre 1920 e 1922.”

No livro Biopolitical Media: Catastrophe, Immunity and Bare Life (“Mídia biopolítica: catástrofe, imunidade e vida nua”, em tradução livre), lançado em 2015, Allen Meek frisou que o processo industrializado de abate de animais criados para consumo se tornou um modelo para os nazistas como “solução final”, ou seja, a forma mais eficaz de se livrar de judeus. 

“O encobrimento gradual do abate de animais a partir da visão pública e o processo industrializado de matar um número cada vez maior de criaturas (hoje chegando a bilhões) foi o que provocou inevitável comparação com o genocídio nazista. A brutalidade dos assassinatos exige que aqueles que trabalham na indústria da carne se dessensibilizem em relação ao sofrimento animal, enquanto o consumidor de carne é estimulado a jamais pensar sobre o processo de matança, que é mantido fora de vista.”

Meek aponta que a dissociação entre morte e vida incentivada pela indústria fez e faz com que muitas pessoas desconsiderem o sofrimento animal no contexto da cultura de consumo, até pelo fato de haver um proposital distanciamento. Esse mesmo distanciamento fez com que grande parte dos apoiadores do holocausto não racionalizassem seu apoio. Ou seja, o sofrimento e as mortes eram desconsideradas porque os apoiadores do genocídio não precisavam testemunhar as medidas de extermínio.

Referências

Patterson, Charles H. Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust. Lantern Books. First Edition (2002)

Ford, Henry. My Life and Work (1922). CruGuru (2008)

Goodall, Jane. Harvest for Hope: A Guide to Mindful Eating. Grand Central Publishing. Reprint Edition (2006)

Meek, Allen. Biopolitical Media: Catastrophe, Immunity and Bare Life. Routledge. First Edition (2015)


Fonte: Vegazeta 


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