Negócios veganos ganham mercado no Rio de Janeiro

Não há crise no mercado de produtos que evitam a exploração de animais, 
que cresce 40% ao ano (Foto: iStock)


O recado do documentário norte-americano What the Health (2017), lançado em março na Netflix, é claro. Em pouco mais de uma hora e meia, o filme pinta um cenário assustador a respeito dos males causados pelo consumo de carnes, ovos e laticínios. No estilo alarmista de Michael Moore (Tiros em Columbine (2002) e Fahrenheit 11 de Setembro (2004)), os diretores Kip Andersen e Keegan Kuhn, que já haviam realizado Cowspiracy em 2014, um libelo contra a indústria pecuária, associam a ingestão desses alimentos a doenças como diabetes, obesidade e câncer. Sempre ouvindo especialistas veganos, a dupla conduz o espectador a conclusões aterradoras, como “comer ovo é mais prejudicial à saúde do que fumar” ou à constatação de que a caseína, substância presente nos queijos, teria sobre os humanos o mesmo efeito da heroína. Não deu outra. Os argumentos do filme se tornaram importante bandeira a favor do movimento vegano, que combate a exploração animal para qualquer fim. “As redes sociais têm ajudado a reverberar o respeito pelos animais e as notícias de maus-tratos na indústria alimentícia. E filmes como esses dão força ao movimento ao expor, de um lado, as barbáries da pecuária e, de outro, os benefícios à saúde da adoção de uma dieta estritamente vegetal”, afirma o presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), Ricardo Laurino.

Só se fala disso: o documentário norte-americano pinta um cenário assustador sobre 
os males causados pelo consumo de carnes, ovos e laticínios (Foto: Divulgação)


O fato é que uma parcela cada vez mais significativa da população tem se interessado por esse estilo de vida: estima-se que já existam cinco milhões de veganos no Brasil. Pesquisa realizada em janeiro deste ano constatou ainda que 63% dos brasileiros pensam em reduzir o consumo de carne — e 73% se sentem mal informados sobre como ela é produzida. Enquanto isso, o volume de buscas pelo termo 'vegano' no Google cresceu 1.000% no País entre 2012 e 2016. Simpatizantes da causa ou apenas atentos à demanda crescente, pequenos e médios empresários vêm investindo alto nesse promissor nicho de mercado, que, calcula-se, cresce 40% ao ano. Segundo o SindRio, sindicato de bares, hotéis e restaurantes, dos mais de 50 estabelecimentos voltados para esse público em funcionamento no Rio, 30 foram inaugurados nos últimos três anos e prosperam mesmo em meio à crise. É o caso do Org Bistrô, que, aberto em 2011, há três meses dobrou o tamanho do salão para acomodar a clientela. “As filas de espera chegavam a duas horas aos sábados”, comenta a chef e proprietária Tati Lund, formada pelo Natural Gourmet Institute, nos Estados Unidos, e convertida ao vegetarianismo desde 2000.

Novo modelo: Marcos Leite, do Hareburger, está adaptando 
todo seu cardápio (Foto: Anna Fischer)


No segmento da alimentação, principalmente, não faltam bons exemplos de como o veganismo está em franca expansão no Rio. Pioneira no ramo de hambúrgueres sem carne, a rede carioca Hareburger está adaptando todo seu cardápio ao conceito vegano, abolindo também queijo, leite e mel. “Ao longo dos anos, os itens sem nenhuma proteína de origem animal foram ganhando mais espaço. Foi uma evolução natural”, afirma o sócio-diretor Marcos Leite, ex-executivo da Mundo Verde, que começa a adotar o modelo nas casas cariocas nos próximos meses e calcula para a rede um faturamento de 11 milhões de reais em 2017. Seu plano é chegar ao fim de 2018 com 30 lojas. O Açougue Vegano, há apenas sete meses no shopping Uptown, na Barra da Tijuca, contabiliza 300% de crescimento e é recordista de vendas na House of Food, cozinha colaborativa da loja multimarcas Void. Em um único dia de participação no projeto, vendeu 16 mil reais em quitutes à base de vegetais, batendo até o picadinho de outro convidado prestigiado — Batista, fiel escudeiro do chef Claude Troisgros. “Nosso esforço é para manter os produtos com preço e sabor equivalentes aos de proteína animal”, conta Celso Fortes, sócio da empresa, que, aliás, marca presença no Rock in Rio com sua coxinha de jaca, um dos carros-chefes. Em outubro, a marca chega a São Paulo; em novembro, ganha uma filial na zona sul carioca e já se acumulam 140 pedidos de franquias pelo Brasil. “Acho que o veganismo vai se tornar a principal fonte de alimentação no mundo. O que faltava eram opções saborosas”, acredita Fortes.

Celso Fortes e Michelle Rodriguez, donos do Açougue Vegano: sucesso nas feiras 
140 pedidos de franquias pelo Brasil (Foto: Ana Branco)


Papo de comerciante? Nem tanto. A projeção da Lux Research, empresa norte-americana de pesquisa, é que, em até 37 anos, um terço das proteínas consumidas no mundo seja de origem vegetal. A Nutrikéo, instituição francesa de consultoria em estratégias alimentares, calcula que o setor vai movimentar mais de 35 bilhões de reais em 2018. O filão vem chamando atenção até dos grandes conglomerados carnívoros. A Tyson Foods, a segunda maior indústria de carne processada do mundo — só fica atrás da JBS —, comprou no ano passado 5% da Beyond Meat, empresa especializada em proteínas vegetais que imitam o sabor tradicional. 

Enquanto os negócios crescem, um mundo se abre aos que desejam experimentar esse estilo de vida. Além de estabelecimentos de comida, começam a se multiplicar as feiras de arte, moda e gastronomia de temática vegana. Desde julho de 2016, a Veg Borá faz edições mensais que atraem até os mais ferrenhos carnistas. Na próxima Feira Vida Liberta, no sábado (23/9/2017) e no domingo (24), o Downtown, na Barra da Tijuca, vai abrigar 40 expositores de comida, roupas, acessórios e cosméticos. E vem aí o iFood dos veganos: criado em Curitiba, o aplicativo Be Veg deve entrar em operação no Rio no ano que vem*.

Elza e Julia Barroso: linha de batons com extratos minerais e vegetais (Foto: Anna Fischer)


Segundo a SVB, o número de pedidos de certificação de produtos veganos no Rio saltou de 10, em 2014, para 145 no ano passado e deve aumentar ainda mais em 2017. Fundada em março, a Face It, especializada em batons, é a novidade da temporada. “Eu e minha mãe começamos a pensar numa marca de cosméticos naturais sem chumbo nem mercúrio. Pesquisando, ficamos apavoradas com os testes em animais”, conta Julia Barroso, 36 anos. Foi quando conheceram o laboratório Labphyto, na Itália, que utiliza extratos vegetais e minerais. Elas vendem, em média, 200 unidades por mês de maquiagem cruelty free (livre de crueldade, em português), sem componentes como mel e colágeno. Com faturamento de 55 mil reais, a dupla tem na clientela nomes ilustres como o maquiador Fernando Torquatto e as apresentadoras Julia Petit e Astrid Fontenelle. 

Esse estilo de vida está se popularizando tanto pela cidade que já existe até uma região recém-batizada de “quadrilátero vegano”. O point está em Ipanema, nos arredores da rua Aníbal de Mendonça, onde se instalou a loja de roupas Svetlana, da estilista Mariana Iacia. Depois de quase largar a moda, incomodada com o uso de couro por grifes como Jean Paul Gaultier e Moschino, ela foi parar no ateliê da estilista Stella McCartney, nome forte da moda vegana. Seu endereço fica pertinho de dois estabelecimentos que adotam a filosofia a favor dos animais, o bar Teva e a matriz carioca da rede Empório Veganza, com 500 itens, de produtos de limpeza e higiene pessoal a petiscos, queijos e sorvetes. Há um ano no bairro, a marca, depois de ter sido convidada, abriu, na última semana, uma loja maior no Barra Shopping.

Presença na moda: Mariana Iacia abriu a Svetlana depois de trabalhar 
com Stella McCartney (Foto: Anna Fischer)

Empório Veganza: primeira unidade carioca aberta em Ipanema, 
há um ano, e, agora, filial na Barra (Foto: Anna Fischer)


A história do veganismo remonta ao tempo do filósofo e matemático grego Pitágoras e do líder espiritual Siddhartha Gautama, o Buda, em torno de 500 a.C., ambos adeptos da alimentação sem carnes. De acordo com a The Vegan Society, a primeira instituição do gênero, criada por Donald Watson em Londres, em 1944, o tema começou a ganhar o mundo quando médicos e especialistas passaram a se opor publicamente ao consumo de ovos e laticínios. O movimento organizado teria começado quando o fundador da instituição se uniu a outros vegetarianos que desejavam retirar os alimentos lácteos da dieta com o propósito de tornar a relação do homem com os animais mais digna, sem exploração. Na ocasião, foi criado o termo 'vegan', que tem como premissa não fazer mal aos bichos, domésticos ou não, seja matar bois para produzir bifes, seja desmamar um bezerro para tirar o leite da mãe, seja estressar [e matar] abelhas na retirada do mel. E isso vale não só para a alimentação. “O veganismo é uma decisão filosófica que se estende para qualquer profissão”, diz Pablo Henrique, do Inglórios Tattoo, em Ipanema. Todo o material usado pelo artista também é cruelty free. Sim, as tintas para tatuagem podem conter ossos torrados de animais (para dar o pigmento preto), glicerina (gordura animal) e gelatina de besouros. E as loções para cuidado posterior costumam levar lanolina (extraída da lã de ovelhas), cera de abelha e óleo de fígado de bacalhau.

Tatuagens sem crueldade animal na Inglórios Tattoo: tintas convencionais 
podem conter ossos torrados de animais (Foto: Anna Fischer)


O estereótipo associado aos hippies da década de 1960 não faz mais sentido. De roqueiros a atletas, de adolescentes** a senhores de idade, variadas tribos adotam esse estilo de vida. Aos 19 anos, Giulia Gayoso, que fez sucesso em Malhação e grava a nova novela das seis, na Globo, Tempo de Amar, é vegana convicta. “Sempre fui muito ligada a essas questões, mas a ficha caiu quando assisti a um filme sobre o impacto da indústria pecuária e leiteira no meio ambiente”, lembra a atriz, que não usa roupas de lã, couro ou seda nem produtos testados em animais. Por mais improvável que pareça, até atletas de alta performance, indivíduos com a maior exigência nutricional do mundo, têm se destacado em suas áreas e provado que veganismo e saúde podem andar juntos. Levantador de peso norte-americano que quebrou o recorde em sua modalidade na Rio 2016, Kendrick Farris se gabou, logo após a prova, de seu preparo físico. “Apenas escolho muito bem minha comida”, disse.

Médicos, mesmo os consumidores de carne, concordam que, com acompanhamento, é possível, sim, levar uma vida 100% vegana e sadia. “Por meio de ingestão calórica adequada, as necessidades são supridas com proteínas vegetais”, diz a vice-presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Rosana Radominski

Fonte: Veja Rio


NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:

1. Leia também: Veganismo cresce e cria oportunidades

*2. Na verdade, já existem no Brasil aplicativos e sites de busca de comida vegana. Saiba mais aqui.

**3. Leia aqui matérias sobre veganismo na infância e adolescência.

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