No programa de férias, a matança cruel de animais


Ulrich Seidl encerrava sua trilogia Paraíso (Paradies), com Esperança (Hoffnung, 2013), quando conversou com o repórter em Berlim. O filme é sobre uma garota gordinha que tenta perder peso num acampamento para jovens obesas. Sua mãe, enquanto isso, passa férias na África, no Quênia. Seidl contou como, pesquisando sobre o turismo de europeus na África, descobriu o que seria o tema de seu próximo filme, Safári (Safari, 2016). O filme foi exibido nos festivais de Veneza e Toronto e agora está em cartaz no Brasil.

O austríaco Seidl é um autor prestigiado no circuito dos festivais, mas está longe de ser uma unanimidade. Nisso lembra outro famoso cineasta da Áustria, Michael Haneke. Seidl adora provocar, filmando o absurdo do comportamento humano. Ele próprio define Safári como “um filme de férias sobre matança (de animais)”. É o que fazem alguns europeus ricos: pagam fortunas para caçar, e matar, animais. Não importa que muitas dessas espécies estejam ameaçadas de extinção. Para quem está entediado da civilização, todo recurso para se divertir é válido. O horror, o horror.

Safári começa com a imagem – e o som – de um corneteiro anunciando que a caçada vai começar. Os caçadores incluem Eva, o marido e o casal de filhos, mais outro casal mais velho. No final, vem a confissão: “É muito excitante puxar o gatilho. Te dá sensação de poder”. Deve ser o que pensam os atiradores solitários que, volta e meia, disparam suas armas na ‘América’ contra estudantes – muitas vezes, são colegas de aula -, idosos ou simplesmente pessoas diferentes e, por isso, merecedoras de desprezo e ódio.

A Associação do Rifle sustenta que é um sagrado direito do povo para se defender, mas não devia ser para disparar indiscriminadamente. Na África, contra animais, vira programa de férias. Seidl vê, nessas bárbaras matanças, um sinal de degeneração da humanidade, além de um degrau a mais do sistemático ataque à natureza que mantém o planeta na zona de perigo. “Nada disso é isolado de outras coisas que ocorrem no mundo.”

Algumas imagens são particularmente chocantes. Uma girafa e seu parceiro. Atingido, o animal demora – e protesta – para morrer. Se aquele som não ecoa na consciência do espectador, já que o caçador não está ligando, a desumanidade chegou a um estado alarmante e o mundo marcha para o fim – moralmente, sem dúvida. Será, talvez, curioso, ver Safári e comparar com Jurassic World: Reino Ameaçado (Jurassic World: Fallen Kingdom, 2018), também em cartaz nos cinemas brasileiros. Na fantasia do diretor J.A. Bayona, os dinossauros são clonados, mas a caçada não é menos impiedosa e culmina num leilão de compradores interessados em transformar os animais antediluvianos em máquinas de matar, um outro tipo de arma. Bayona está brincando de ficção, mas até ele, em São Paulo, no começo do ano, quando veio promover seu filme estrelado por Chris Pratt e Bryce Dallas Howard, disse que o horror de seu filme tem valor de advertência – contra experimentos que ameaçam se voltar contra o homem.

Os caçadores argumentam que o homem caça animais desde os primórdios da humanidade, que a matança previne a superpopulação e o turismo estimula as economias locais etc. O cinismo não tem limite. Os africanos, de tão pobres, estão ali comendo restos de ossos para sobreviver. E fica a questão: se o diretor está filmando para denunciar, para mostrar indignação, por que não intervém? O corneteiro do começo comenta com a mulher que os negros correm mais porque têm as pernas mais extensas e os músculos e ossos são de aço, um comentário que talvez pretenda ser elogioso, mas no fundo é tremendamente racista. Não é fácil assistir a Safári, mas também não é fácil deixar o cinema com as 1.001 questões éticas que o filme levanta, incluindo sobre o predatório colonialismo europeu no continente africano.

Fonte: IstoÉ 

Foto: Divulgação 

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