Letras e gatos


Por Ivan Angelo

Os gatos domésticos estão nos sofás há mais de quatro mil anos. Consta que os antigos egípcios se encantaram com um pequeno felino que encontraram nas guerras contra os núbios, seus vizinhos, e começaram a domesticá-lo. Ao longo de milênios, os gatos se adaptaram à vida caseira, farta de roedores nos depósitos de cereais, e por volta de 2000 a.C. já eram uma divindade no Egito, a deusa Bastet. Quem matasse um gato pagava com a vida. Após a conquista romana, os gatos egípcios se espalharam nas colônias romanas, no Oriente, no Ocidente, cruzaram com felinos silvestres, diversificaram-se.

Dizem que o gato é um animal feminino, tanto quanto o cão é masculino. O andar felino, o olhar cheio de nuances, a sensualidade, a cumplicidade com a noite… Há um pouco de tudo isso, de fascinação e preconceito, na associação que os homens fazem entre gatos e mulheres. O privilégio mudou: hoje, tanto há “gatas” quanto “gatos” no palavreado da sedução e da avaliação física. Mas por que se diz que escritores gostam de gatos? Talvez não seja a “felinidade” que os encanta, é provável que seja o silêncio. Gatos não interrompem.

Nunca tive gatos, mas escritores amigos meus, sim. Paulo Francis tinha verdadeira paixão por seus três gatos. A mulher dele, Sônia Nolasco, mandou-me foto de Paulo sem camisa com um dos gatos aninhado em sua confortável barriga. Dormiam, os dois. Lygia Fagundes Telles dividia a mesa de trabalho com sua gata, e às vezes os olhos de uma paravam nas pupilas da outra, até que surgisse uma inspiração ou um bocejo. Aguinaldo Silva tinha um siamês que seguia nossa conversa sobre um capítulo para uma série de televisão, olhando ora para um, ora para outro, até desistir e ir embora, aborrecido com o papo. Machado de Assis ganhou um de uma vizinha de 12 anos e lhe escreveu uma cartinha carinhosa como se fosse o gato, dizendo que o tutor comia à mesa com ele no colo. Dos novos, o ficcionista Luiz Ruffato medita sobre a lição de silêncio de seus gatos neste mundo cada vez mais ruidoso. Manuel Bandeira talvez não tivesse gatos, mas, no poema Pensão Familiar, observa amoroso o fazer xixi de um deles e seus gestos delicados para encobrir o molhadinho: “É a única criatura fina na pensãozinha burguesa”.

O poeta T.S. Eliot amava gatos. Fez um belo poema sobre os nomes deles. Diverte-me imaginar como surgiu a ideia. Estamos em Londres, numa tarde fria, e uma linda jovem, universitária norte-americana, entrevista Eliot, quando desfila pelo tapete um majestoso gato de farto pelo negro. Eliot olha para a moça e diz:

— Os gatos têm três nomes, you know.

Really? — diz ela, e faz um gesto de universitária que se prepara para ouvir o famoso poeta falar sobre gatos.

— O primeiro é o nome caseiro, carinhoso, que a família usa para chamá-lo. Chaninha, Pretinha, Mimi etc. O segundo é um nome para as visitas. Faz um belo efeito quando uma pessoa importante olha para ele como você está olhando agora, esse gesto macio e elegante de colocar a pata no chão, e pergunta o nome dele e respondemos: Nabucodonosor, Atahualpa, Shakespeare ou Urias. O gato não atenderá quando o chamarmos por um desses nomes, ele nos olhará com indiferença felina.

Nesse momento, o gato pula para o colo do poeta e a voz de T.S. se torna pouco mais que um sussurro:

— O terceiro nome é o que ele próprio se dá, e pelo qual gostaria de ser chamado, mas que guarda consigo no silêncio aveludado de seus passos, no mistério vertical de suas pupilas.

O poeta sorri para a moça muito branca, enquanto alisa os pelos negros de Akhenaton.

Fonte: Veja SP 

Ilustração: Negreiros / Veja SP


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