E quem se importa com ratos?

Gerbil


A partir do momento que abrimos nossos olhos para o especismo, não somos mais capazes de olhar para os animais do mesmo modo banal como fomos incitados a olhar desde nossa infância.

Ao seguir esse novo olhar, deparamos rapidamente com a condição dos cães e gatos abandonados e/ou “produzidos” e comercializados como brinquedos; a situação de bovinos, suínos, ovinos e todas as demais espécies que podem ser classificadas dentro de padrões de exploração zootécnica, na indústria dos alimentos, vestuário etc. Mas permanecemos insensíveis e indiferentes com a situação de um dos animais que mais sofrem, tanto em número de indivíduos quanto pelo tipo de estresse e dor a que são submetidos. São os ratos.

Origem da repulsão

Quando falamos em ratos, a primeira coisa que ouvimos é sempre uma sonora expressão do mais profundo nojo e repulsão. É como se ratos fossem o sinônimo de todas as formas mais horríveis de pestes e a personificação da miséria e falta de saneamento nas sociedades mais subdesenvolvidas presentes no planeta. Poucos percebem que os ratos, assim como nós, são mamíferos, e têm a mesma capacidade de sentir dor que possuímos. As famosas “pestes” transmitidas pelos ratos são consequência do ambiente com sérias deficiências sanitárias onde estão inseridos nas grandes cidades ou no meio rural, e não algo próprio daquele ser, que por uma questão de adaptação ao meio, tornou-se um vetor em potencial. Outro exemplo desse processo de adaptação é o mecanismo contra a leptospirose por ele desenvolvido.

Um rato jamais adoece de leptospirose, apenas é capaz de transmitir a doença para outros homeotermos. Do mesmo modo, ao contrário do que a maioria das pessoas acredita, ratos não são “seres de esgoto”, eles apenas tomaram essa posição quando foram incorporados às cidades, ao terem seu habitat natural invadido pelos humanos.

O rato na ciência

Rattus norvegicus


Num ciclo histórico caracterizado periodicamente pela oposição de pensamentos, ocorre o fim da Idade Média e o declínio da igreja católica. Esta passa gradualmente, a partir do Renascimento, a ser substituída como força ideológica pela ciência. Nos séculos seguintes, a experimentação animal atinge seu apogeu, passando a reconhecer o rato como um excelente modelo experimental.

Muitas pesquisas utilizam diversas espécies como cães, gatos, coelhos, macacos etc., porém, cada vez mais entidades protetoras ou de defesa dos direitos animais têm conseguido espaço para protestar e divulgar o que é realizado dentro dos laboratórios, e a sociedade tende a compactuar cada vez menos com formas legitimadas de abuso.

A estratégia da ciência tem sido então investir na substituição de espécies animais “simpáticas” por outras “menos simpáticas”. Afinal, para muitos, realizar experiências dolorosas com cães é crueldade, enquanto que com rãs, porcos e ratos se torna aceitável.

Hamster


Outros motivos pelos quais ratos vêm sendo cada vez mais empregados na pesquisa é pela sua alta taxa de reprodução, o fato de serem mamíferos, de fácil manejo, dóceis e pequenos. Isso não obriga biotérios a terem grandes instalações nem grandes despesas com alimentação.

Outro fenômeno que poucos conhecem é a “necessidade” do sacrifício de animais para a aquisição de títulos e publicação de artigos científicos. A busca por métodos substitutivos ao uso de animais no ensino e na ciência ainda não é vista como algo urgente ou prestigiado. Do modo como a ciência está hoje estruturada, um cientista que realiza uma pesquisa metodologicamente embasada, mas sem o uso de animais, acaba muitas vezes sendo prejudicado porque ela será considerada de baixo impacto - isso diminui a aceitação na comunidade científica e a possibilidade de publicar a pesquisa em periódicos científicos.

É interessante ressaltar que tal fenômeno ocorre mesmo quando, além do uso correto dos métodos, o pesquisador utiliza justificativas éticas para argumentar o motivo de não utilizar animais.

Em manuais atuais de experimentação animal, já é possível encontrar algumas páginas, às vezes até um capítulo, dedicadas à ética no uso de animais pela ciência. Entretanto, geralmente, ou estes se encontram em discordância com o conteúdo restante do livro ou demonstram total falta de preparo para a discussão ética.

Não é raro o apelo para explicações como “os animais devem servir ao homem, por isso é correto utilizá-los” ou então para o sentimentalismo, colocando defensores dos direitos animais na condição de terroristas fanáticos.

Mus musculus


Técnicas de pesquisa com ratos

A exemplo do que ocorre na produção de suínos e outros animais, os ratos muitas vezes são identificados com cortes padronizados nas orelhas, sendo cada furo correspondente a uma unidade ou dezena. Recomenda-se “evitar o sofrimento excessivo do animal. O corte constitui-se de tesouras pequenas e um alicate próprio para o corte em círculo nas orelhas”[1].

Alguns estudos realizados com ratos

Psicologia

Modelos de ansiedade: consiste em provocar medo e ansiedade em animais através de punições por confinamento ou choque, exposição a espaço aberto não familiar, lugares altos ou luz intensa.

Neurologia

Modelo de epilepsia: aplicação intraperitonial de pilocarpina após pré-tratamento com atropina. O animal inicialmente apresenta tremores e posteriormente salivação e crises convulsivas, entrando em coma em muitos casos.

Eletrochoque máximo: eletrodos são aplicados sobre os globos oculares previamente umedecidos com solução salina e ocorre uma descarga elétrica, desencadeando as crises.

Modelo de hipertensão: hipertensão de origem renal é realizada pela remoção de um dos rins e a colocação de um clipe na artéria renal. Hipertensão neurogência ocorre após a realização de lesões no sistema nervoso central.

Gastroenterologia

Modelo de lesão gástrica: após anestesiado, o rato é sondado, e através dessa sonda substâncias como aspirina e etanol são administradas. O rato então tem seu estômago removido para estudos.

Modelo de peritonite: na peritonite por inoculação de bactérias não padronizadas, fezes humanas são injetadas intraperitonealmente, o animal é então sacrificado e tem sua cavidade abdominal aberta para estudos.

Modelo de transplante intestinal fetal: ratas prenhes são anestesiadas intraperitonealmente, parte do intestino dos fetos é removida e implantada em outro animal.

Outros

Modelo de inoculação de tumores: os tumores podem ser inoculados em diversos órgãos, como pulmão e cérebro, sendo o animal sacrificado assim que apresenta sinais de morte iminente.

Modelo para estudo de queimaduras: calcula-se a superfície corporal do animal. Em seguida, ele é anestesiado e, com uma barra metálica de liga de bronze aquecida em água fervente, tem seu corpo queimado em pontos escolhidos pelo pesquisador. As lesões são realizadas de acordo com protocolo que estabelece as diversas intensidades e extensões das queimaduras, a fim de padronizar o experimento.

Induzindo a morte

Existem três situações em que os ratos são levados à morte: o sacrifício, por descarte em laboratórios; envenenamento por rodenticidas, utilizados como controle populacional para prevenção de doenças; eutanásia clínica, realizada em casos de doença incurável em ratos de companhia. Além da drástica diferença nos métodos empregados, é preciso notar que cada método é realizado para um público específico: cobaias, “animais de esgoto” ou animais de companhia, sendo que apenas essa diferença é que determinará a forma de execução e não características anatomofisiológicas.

Os métodos de execução usados para descarte em laboratórios podem ser classificados como químicos ou físicos. Os agentes físicos consistem em deslocamento cervical, decapitação, traumatismo craniano e exsanguinação.

Métodos físicos

Deslocamento cervical: apesar de ser reconhecido como um bom método “eutanásico”, o animal leva alguns segundos para a perda total da sensibilidade e morte[1]. Esse método consiste no rompimento da medula espinhal através de um puxão na cauda enquanto sua cabeça é fixada entre uma pinça ou até mesmo os dedos do pesquisador.

Traumatismo craniano: “consiste em aplicar um golpe na base do crânio com força suficiente para produzir depressão do sistema nervoso central. Esse procedimento pode ser bem aplicado, seja quando o animal é preso pelo rabo e levado em direção a um anteparo fixo resistente, como a quina de uma mesa ou bancada, seja quando o animal fica sobre essa mesma superfície e é desfechado um golpe com um bastão de madeira”[1].

Decapitação: “embora esteticamente desagradável devido ao grande afluxo de sangue, causa morte instantânea com imediata perda de reflexos. É efetuado com o auxílio de uma guilhotina especialmente confeccionada para o objetivo proposto”[1].

Exsanguinação: após a anestesia ou sedação do animal (vale lembrar que sedativos são uma categoria de fármacos que não têm como finalidade promover a analgesia), é realizada uma venopunção em vasos de grande calibre ou punção cardíaca. O animal vai a óbito por choque hipovolêmico, isto é, pelo déficit de sangue na circulação.

Métodos químicos

Fármacos inalatórios

Anestésicos: como não é realizada medicação pré-anestésica, o animal pode apresentar agitação e excitação durante a indução. Algumas substâncias são irritantes de mucosa, afetando principalmente olhos e nariz.

Fármacos não inalatórios

São administrados por via intraperitoneal, intravenosa ou intracardíaca. Para controle populacional, são empregados rodenticidas, incluindo anticoagulantes, colecalciferol (vitamina D3), fosfetos de alumínio, zinco ou cálcio, estricnina, brometalina, fósforo amarelo, fluoracetato de sódio etc.

Anticoagulantes: como o próprio nome sugere, agem impedindo a coagulação sanguínea através de mecanismos de competição com a vitamina K. Venenos que agem por esse princípio acabam levando os ratos a óbito por hemorragia.

Colecalciferol (vitamina D3): como a vitamina D3 promove a retenção do cálcio, seu uso como rodenticida desencadeia uma hipercalemia, ou seja, excesso de cálcio na corrente circulatória, ocasionando uma série de distúrbios cardíacos e renais.

Fosfetos de alumínio, zinco ou cálcio: utilizados principalmente por empresas de dedetização, promovem irritação respiratória e gastrointestinal, causando congestão e edema pulmonar, degeneração do miocárdio, fígado e rins.

Estricnina: age inibindo o neurotransmissor glicina. Desencadeia alterações nervosas como tremores, espasmos e convulsões. O animal envenenado morre geralmente por asfixia.

Brometalina: causa distúrbios bioquímicos dentro das células, inibindo a bomba de sódio, o que gera edema celular e degeneração.

Fósforo amarelo: felizmente, ainda pouco utilizado. Causa degeneração gordurosa de vários órgãos, principalmente no cérebro, rins e fígado. Além disso, é responsável pelo colapso cardiovascular do animal e é um potente irritante da mucosa gástrica.

Fluoracetato de sódio: por apresentar alta toxicidade a diversas espécies de animais domésticos, apenas exterminadores licenciados têm acesso a esse tipo de veneno. Atua através do acúmulo de ácido cítrico, bloqueando a produção celular de energia e a respiração celular. Num primeiro momento, o coração e o cérebro são afetados severamente pelo déficit de energia.

Além do sofrimento na morte dos ratos por envenenamento, cães e gatos e até mesmo crianças estão sujeitos à intoxicação acidental.

É importante ressaltar que, nos EUA, a terceira maior causa de intoxicação acidental em cães é devido ao uso de rodenticidas[2]. Por outro lado, há também danos ambientais, que cada vez mais tornam-se preocupantes e passíveis de atenção.

Quem são esses seres?

Rattus rattus


Os ratos são roedores, assim como cobaias, capivaras etc. Muitas vezes, são confundidos com hamsters, gerbils e camundongos. Entre as espécies domésticas, as mais comuns são rattus rattus e rattus norvegicus, sendo este último o modelo experimental para pesquisas.

Os ratos de modo geral são animais tranquilos, limpos, e apresentam comportamento comunitário, podendo ser criados juntos desde jovens, sendo raras as brigas entre eles quando adultos. Esses animais são construtores de galerias e mesmo quando domesticados sentem necessidade de fazê-las. Apresentam hábitos noturnos e quando fogem geralmente retornam a seus lares.

As pesquisas com ratos não param, porém, pouco se sabe e pouco se divulga sobre o comportamento desses animais.

Desse modo, parece difícil conseguir quebrar o paradigma com relação ao modo como os vemos, tornando os detalhes de seu comportamento evidentes apenas para aqueles poucos privilegiados que os têm por perto como animais de companhia.

Mus musculus


Muitas vezes, é difícil conseguir reconhecer, que após anos de advertências sobre a periculosidade dos ratos para a nossa saúde, seja necessário admitir que talvez a situação seja absolutamente inversa. O ser humano continua sendo a maior ameaça para esses animais, e diferentemente de gatos e outros predadores naturais, ele o faz não por necessidade de sobrevivência, mas por desconsiderar racionalmente a capacidade de sofrimento e o direito de viver desses indivíduos.

É preciso acordar para o fato de que os interesses humanos não podem estar acima dos interesses básicos das outras espécies. Ratos provenientes de esgotos podem ser mantidos afastados do convívio humano através de sistemas de vedação de ralos e janelas, bem como o uso de telas.

Já estão disponíveis no mercado “ratoeiras ecológicas”, que não machucam o animal e permitem que ele seja removido para um local adequado. Por outro lado, todos os anos muitos ratos ainda saudáveis morrem em biotérios por serem descartes de pesquisa, quando poderiam ser adotados e criados como animais de companhia.

Existem também muitas empresas que fabricam produtos de qualidade e já aboliram os testes com animais. Algumas ONGs possuem listas de empresas que testam e daquelas que não testam em animais. Através das decisões de consumo ou boicote* diante de uma prateleira de supermercado, é igualmente possível ajudar a salvar muitas vidas, vidas de seres que só tiveram o infortúnio de terem nascido na “espécie errada”.

Referências

1. Rhoden, E. L. Princípios e Técnicas em Experimentação Animal. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006. 567 p.

2. Oswailer, G. D. Toxicology. Philadelphia: Williams & Wikins, 1996. 491 p.

3. Harkness, J. E. Biologia e Clínica de Coelhos e Roedores. São Paulo: Roca,1993. 238 p.


Fonte: Olhar Animal

Fotos: Reprodução


NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:


*2. A ONG PETA (sigla em inglês para Pessoas pelo Tratamento Ético aos Animais) tem listas com algumas dessas empresas, multinacionais em sua maioria, que testam e que não testam em animais. 

Já a PEA lista empresas brasileiras que não fazem testes.

3. Nós nos importamos com todos os animais. Em nosso Centro de Adoção, temos twisters e camundongos resgatados de testes e hamsters vítimas de abandono. Eles estão à espera de uma família que cuide deles com amor e respeito. Venha conhecê-los! Confira nosso endereço e telefones aqui. Veja abaixo algumas de suas fotos.

Camundongos para adoção em pares
(Foto: Natureza em Forma / Divulgação)

Hamsters abandonados para serem adotados juntos: são três 
(Foto: Natureza em Forma / Divulgação)

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