O cinema e os animais

O filme 101 Dálmatas fez crescer a procura por cães dessa raça, mas muitos foram abandonados  (Foto: Reprodução)


Por Carlos Daniel Vallada*

O cinema talvez seja a forma de arte que mais dá margem para uma discussão sobre a exploração animal. Não apenas por ter a capacidade de uma abordagem direta a temas que causam reflexão, mas também pela forma como os filmes são produzidos.

Há diversas coisas a serem questionadas, desde o uso de figurinos ou objetos de cena feitos de couro, lã ou outras coisas até a gelatina animal usada para a película, passando pelo que os personagens comem em cena. Mas aqui neste texto falaremos especificamente sobre o uso de animais vivos em sets de filmagens.

Eu, como vegano abolicionista, acredito que animal nenhum deva ser usado em filmes, mesmo que esteja sendo bem tratado, pelo simples fato de que é algo que fazemos a contragosto do animal e não visando a seu benefício. Mas mesmo que essa não seja sua opinião, há motivos de sobra para não apoiar o uso de animais não humanos em sets, então peço que continue lendo.

Mas antes, existe também um problema causado pela utilização deles em filmes, mas que não é algo que afeta os indivíduos usados no filme em si. Após o lançamento de 101 Dálmatas (101 Dalmatians, 1996), da Disney, muita gente quis ter seu próprio dálmata. Porém, sem saberem das dificuldades de se criar um cachorro da raça – por seus constantes problemas de saúde e também por seu temperamento -, muitas pessoas acabaram abandonando os animais.

Ou também a quantidade de chimpanzés dóceis e humanizados que vemos em diversas produções, que criam a falsa impressão de que esses animais podem ser domesticados facilmente, ocasionando um problema semelhante ao dos dálmatas.

Mas o objetivo principal deste texto é falar dos malefícios aos animais particulares em cada set.

Mortes em sets

Quase 100 cavalos morreram durante as filmagens de Ben-Hur (Foto: Reprodução)


A maioria das pessoas ficaria indignada se, hoje em dia, acontecesse algum caso como o do filme Jesse James (1939), em que um cavalo foi literalmente jogado de um penhasco para a filmagem de uma cena. Ou como o do clássico Ben-Hur (1959), em que quase 100 cavalos morreram durante as filmagens. Já O Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, 1980) mostrou brigas de galo e vacas estripadas de verdade. E o polêmico Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980), que matou uma tarântula, uma cobra, um quati, um porco, uma tartaruga e um macaco-de-cheiro em cena – sendo os dois últimos decapitados.

Mas esses são apenas alguns dos casos mais famosos e chocantes. Mais recentemente, vieram à tona os incidentes de Luck (2011), uma série da HBO sobre corrida de cavalos, que foi cancelada após a informação de que quatro deles morreram durante a produção. No ano seguinte, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada (The Hobbit: An Unexpected Journey, 2012) foi lançado mesmo após a denúncia sobre a morte de 27 animais, entre galinhas, ovelhas, cabras e cavalos e ainda fez mais de um bilhão de dólares em bilheteria.

Os casos de mortes propositais de animais em sets realmente parecem ter desaparecido, mas ainda são diversas as histórias de óbitos por acidentes ou más condições de alimentação ou acomodação. Para ficar em apenas dois exemplos: em Armações do Amor (Failure to Launch, 2006), um esquilo foi acidentalmente esmagado pela pessoa que o transportava de um lugar para o outro, enquanto em Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra (Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl, 2003), uma explosão submarina programada pela equipe de efeitos visuais fez com que dezenas de peixes e lulas mortas aparecessem na praia durante os quatro dias seguintes.

E você pode dizer que “acidentes acontecem”, é claro. Mas quando acidentes fatais são tão mais comuns com cavalos e animais não domesticados do que qualquer tipo de acidente com humanos ou até com cachorros – animais com os quais os humanos tendem a se preocupar mais -, fica claro que não é uma simples questão de acidentes, mas da mais pura negligência e não preocupação, mesmo.

Outros maus-tratos

Os famosos sorrisos que chimpanzés parecem fazer com prazer tão frequentemente 
nos filmes são na verdade uma reação de medo desses animais (Foto: Twitter)


É óbvio que a maioria dos incidentes de maus-tratos animais em filmagens não resulta em mortes. Em Resgate Abaixo de Zero (Eight Below, 2006), um cachorro entrou numa briga com outros e levou cinco socos no diafragma, já que seu treinador achou que essa seria a única maneira de apartar. Em Speed Racer (2008), após um macaco morder um dos atores, ele teria apanhado também. E esses são apenas dois casos que ganharam repercussão.

Mas provavelmente, na maioria dos sets, você realmente não verá maus-tratos animais tão evidentes assim. Isso porque, em primeiro lugar, o confinamento e as condições de estresse causados aos animais durante filmagens não são considerados maus-tratos pela maioria das pessoas. E também porque muita coisa acontece antes de os animais chegarem aos sets.

Separação precoce da família, métodos violentos de adestramento e confinamento são frequentes para “animais atores”. Abuso físico e psicológico tanto para aqueles que irão servir à indústria do cinema quanto para suas mães. Punhos, cabos de vassoura, tacos e choques elétricos são utilizados para o treinamento. E quando os animais selvagens não servem mais a seus treinadores, muitas vezes são descartados em zoológicos de beira de estrada.

Chimpanzés e orangotangos, por exemplo, vivem mais de cinco décadas, mas são abandonados após oito anos, quando se tornam grandes e perigosos demais para estarem em um set de filmagem. Aliás, os famosos sorrisos que chimpanzés parecem fazer com prazer tão frequentemente nos filmes são na verdade uma reação de medo desses animais.

Não que não haja treinadores que, a seu modo – já que discordamos bastante -, sejam realmente preocupados com a integridade física e mental dos animais. Mas um dos mais famosos treinadores de Hollywood, ligado a produções recentes como Homem-Formiga (Ant-Man, 2015), Maze Runner: Correr ou Morrer (The Maze Runner, 2014) e 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013), é acusado de diversas violações, incluindo má alimentação, agressão física, pouco espaço oferecido aos animais e até a suspeita de que alguns deles tenham vindo do mercado negro.

“Nenhum animal foi ferido”

O tigre King quase morreu afogado durante uma cena de As Aventuras de Pi
(Foto: Reprodução)


E ninguém faz nada a respeito? Bem, a American Humane Association (AHA) é uma organização dedicada ao bem-estar de animais e crianças, e desde 1940 – após o incidente do filme Jesse James – tem a função de monitorar presencialmente a utilização de animais em cenas para o cinema e a televisão. É dela o selo “No Animals Were Harmed” (“Nenhum Animal Foi Ferido”) que se vê após os créditos de produções cinematográficas. Porém uma reportagem de novembro de 2013 da revista The Hollywood Reporter (leia aqui, em inglês) mostrou que essa está longe de ser uma organização confiável para o que se propõe.

Para começar, ela não fiscaliza a pré-produção nem as condições de vida ou de treinamento dos animais fora do set. Ela também não tem nenhum poder real de paralisar uma filmagem, aplicar multas ou qualquer coisa do tipo. E também não consegue fiscalizar todos os sets – aproximadamente metade das cenas com animais, apenas -, por motivos como distância da locação, calendários que mudam, filmes que simplesmente não pedem o monitoramento e também a falta de funcionários, o que às vezes faz com que um representante tenha apenas cinco minutos para observar as condições de uma filmagem, antes de partir para a próxima.

Além disso, a American Humane Association diz que não fiscaliza animais em trânsito ou em acomodação entre filmagens. Se um animal é machucado não intencionalmente e não durante a execução da cena em si, o filme é basicamente isento de culpa.

Mas também há problemas que são muito mais uma questão de falta de vontade mesmo por parte da AHA. A representante encarregada de monitorar o filme As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012) mandou um e-mail para uma colega falando sobre como o tigre King quase morreu afogado durante uma cena, e pedindo para que não comentasse a história com ninguém, “especialmente com o escritório”. Em outro caso, quando questionados por oficiais que investigavam a morte de dois cavalos durante as filmagens de Flicka (2006), os funcionários simplesmente os xingaram. Representantes que reclamam do tratamento de animais em sets muitas vezes são considerados “causadores de problemas” e, assim, podem não ser escolhidos para monitorarem produções de pessoas mais famosas, poderosas ou próximas dos membros da AHA.

Aliás, considerando que a organização é financiada basicamente por atores e produtores de Hollywood – alguns deles próximos da AHA -, é quase como se os filmes fossem fiscalizados por aqueles que os fazem. Outro problema é que, como não é um órgão do governo que tem esse papel de regulador da indústria, não há leis de divulgação que impeçam os dados de permanecerem em segredo.

Não é comum que a AHA faça reclamações formais sobre os filmes ou que pelo menos recuse seu selo de “Nenhum Animal Foi Ferido”, o que faz com que este seja basicamente uma mera declaração de que não houve nenhum assassinato intencional durante as filmagens. No final das contas, o selo tem uma função quase inútil nos dias de hoje (totalmente inútil, aliás, considerando o acesso que temos às informações e também que há muitos filmes não monitorados): dizer que aquele animal que morre durante o filme não morreu de verdade na frente das câmeras.

Tudo bem se bem tratados?

Muitos dos bichos vistos em Babe - O Porquinho Atrapalhado são bonecos animatrônicos, mas também foram usados centenas de animais reais (Foto: Reprodução)


Isso tudo para mostrar que, mesmo que você acredite que não seja um problema o uso de animais em set em si desde que não haja maus-tratos, é muito difícil afirmar que não houve maus-tratos em alguma produção. Na verdade, a única forma de afirmar que não houve maus-tratos a “animais atores” é se não houver “animais atores” no filme, já que isso é algo que vai além da competência dos produtores no set. Mas, como eu disse, discordo dessa visão de que o uso em si não seja um problema. E peço que fique comigo por mais alguns parágrafos.

Usarei agora, como exemplo, três longas muito bem intencionados em seus discursos, mas que merecem ser criticados em outros aspectos.

Recente candidato húngaro à indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o longa Deus Branco (Fehér isten, 2014) conta a história de um cachorro normal – não fala, não se mostra muito mais inteligente que o esperado, não é antropomorfizado de forma alguma – que, após ir parar num canil, consegue fugir com outras dezenas de cães em busca de vingança por aqueles que o maltrataram. A obra, além de falar em defesa dos cachorros, claramente relaciona o consumo de carne aos maus-tratos. As cenas onde há brigas entre cães ou um deles atravessando uma rua movimentada foram filmadas sem nenhum tipo de perigo para os animais envolvidos. Mas o fato é que foram usados quase 280 cachorros no filme.

Babe – O Porquinho Atrapalhado (Babe, 1995) tem uma bela mensagem contra o consumo de qualquer tipo de carne, mostrando ao público que todos os animais merecem igual consideração moral do ser humano. Além disso, o longa foi diretamente responsável por um boom de vegetarianismo nos Estados Unidos, e o protagonista James Cromwell virou vegano após seu convívio com animais no set. E esse é o problema. Embora aproximadamente metade das vezes em que vemos algum pato, porco, gato, cachorro, rato ou ovelha em cena, eles sejam bonecos animatrônicos, foram usados 550 ovelhas, 48 porcos e mais de 300 outros animais.

Planeta dos Macacos: A Origem (Rise of the Planet of the Apes, 2011) é um filme que critica o uso de animais na indústria farmacêutica e também tenta fazer com que o público se sensibilize com os grandes símios, mostrando que eles têm direito à liberdade total. Além disso, a produção não usou nenhum chimpanzé, bonobo, orangotango ou gorila durante as filmagens, utilizando a tecnologia de motion capture (captura de movimento) para representá-los. O longa foi elogiado até por entidades de defesa animal, por sua mensagem e seus métodos, mas ainda assim teve a presença de cavalos reais durante o clímax.

Antes da primeira cena de Deus Branco, a produção já faz questão de dizer que as centenas de cachorros coadjuvantes foram pegos de abrigos para cães e que todos eles arranjaram tutores ao final das filmagens. Babe – O Porquinho Atrapalhado na Cidade (Babe: Pig in the City, 1998), a continuação de Babe, também usou dezenas de cães retirados de abrigos e conseguiu com que todos fossem adotados. E é óbvio que fico feliz com essas centenas de cachorros conseguindo um lar, mas eles não poderiam ter conseguido sem serem usados para os filmes?

É difícil assistir ao longa húngaro sem pensar no quão exaustivo para os animais deve ter sido filmar algumas das cenas. Isso sem falar na tortura psicológica que deve ser para um cão “simular” sensações como medo, raiva e tristeza. O mesmo acontece com algumas cenas nos dois longas sobre o porquinho atrapalhado. Na verdade, em maior ou menor grau, o mesmo acontece em qualquer filme que tenha algum animal em cena.

Além de todos os fatores pré-set já citados anteriormente, sobre os quais as produções raramente têm algum controle, pense no quão estressante deve ser para um animal estar em um ambiente desconhecido – muitas vezes, um estúdio quente ou um lugar a milhares de quilômetros de seu verdadeiro lar -, cercado por gente desconhecida – muitas vezes, dezenas e dezenas de pessoas -, tendo de fazer repetidamente algo que mandaram ele fazer. Pense no quão estressante isso não seria para uma criança. Pense no quão estressante isso não é, muitas vezes, até para adultos que escolheram estar lá.

Um animal não deveria ser obrigado a fazer nada que não queira, a não ser em casos para seu próprio benefício ou segurança dele ou de outros animais ou até humanos. Mas uma filmagem está longe de ser algum desses casos, mesmo quando quer passar uma mensagem de direitos animais, pois há soluções alternativas.

As alternativas

Todos os animais do filme Noé são digitais (Foto: Reprodução)


“Tá, então você está sugerindo que não usemos animal algum em qualquer produção audiovisual?”

Não estou dizendo que você seja obrigado a concordar plenamente comigo, mas que pelo menos reflita sobre todas essas condições. Mas sim, estou sugerindo isso.

“E como os realizadores deveriam fazer, então? Você não está dificultando demais a arte?”

Bem, isso é relativo. O cinema, assim como outros tipos de arte, já depende da superação de diversos tipos de limitações técnicas de seus realizadores. Não é como um livro, em que qualquer coisa que você escreva terá a mesma dificuldade.

Eu sou a última pessoa a querer que os animais deixem de ser representados no cinema. Isso é, muitas vezes, uma maneira bastante efetiva de trazer reflexões sobre a exploração animal para o público. Mas há diversas maneiras de representar animais em cena. E isso deve ser uma preocupação de seus realizadores, sempre.

Ora, quando você quer fazer um filme com explosões, desmembramentos, sangue, alienígenas, dinossauros, você lida com dificuldades técnicas para representar essas coisas. E isso porque me foquei em algumas das mais visíveis. Mas a verdade é que, no cinema, absolutamente tudo é pensado em “conseguimos representar isso? Como vamos representar isso? Qual é a melhor maneira, ou a mais barata, ou a mais fácil?”. Cinema é a arte de iludir o espectador, desde a própria sensação de movimento, passando pela interpretação dos atores, por toda a iluminação, montagens paralelas, conversas por telefone, lutas, cenas em carros etc.

E quais são as maneiras alternativas de se representar um animal em cena? Bem, são várias, cada vez mais. Para começar, pode-se utilizar imagens de arquivo. Ou escolher fazer seu filme em animação, principalmente se os animais forem parte tão integral da história. Pode-se também usar efeitos digitais, como no caso de todos os símios em Planeta dos Macacos: A Origem ou absolutamente todos os animais presentes em Noé (Noah, 2014) – aliás, o diretor Darren Aronofsky diz que fez questão de fazê-los completamente digitais justamente por ser contra o uso deles.

Em alguns casos, humanos vestidos e maquiados, como no primeiro O Planeta dos Macacos (Planet of the Apes, 1968), podem ser a solução. Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), para retratar esses animais extintos, usou efeitos digitais em apenas 20% das cenas, sendo que no resto eram bonecos animatrônicos gigantes ou pessoas vestidas de velociraptors. Pode-se ainda optar por algo mais lúdico, como a série Capitu (2008) ou a novela Meu Pedacinho de Chão (2014), em que todos os animais em cena eram bonecos que não faziam a menor questão de esconder que eram bonecos. Em último caso, recomendo pensar numa maneira de tirá-los do roteiro, se não houver outra alternativa viável.

O fato é que a única maneira de ter certeza de que um animal não será maltratado durante uma filmagem é não usá-lo. E a criatividade é posta para funcionar o tempo todo na hora de escrever um roteiro ou fazer um filme. Ou seja, ideias não faltam, isso sem falar nas possibilidades que ainda podem surgir nos próximos anos. Quando alguém não tem condições de fazer um filme da forma que gostaria, normalmente a pessoa simplesmente não o faz. Tantos e tantos longas são adiados simplesmente por seus realizadores acharem que ainda não têm a capacidade de fazê-los de forma satisfatória. O próprio George Miller, produtor e roteirista de Babe, esperou 10 anos para fazer o filme, porque queria que a tecnologia chegasse a um nível aceitável.

Seja como for, nenhuma forma de arte deve se sobrepor aos problemas morais em sua realização.


* Carlos Daniel Vallada, formado em cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), é roteirista e já trabalhou escrevendo sobre a sétima arte para os sites Portal Higi e El Hombre

Fonte: Vista-se


NOTA DA NATUREZA EM FORMA:

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