Na história da humanidade, a presença do animal não humano é fortemente vista na literatura e em outras artes. Desde a mitologia antiga, seres híbridos se fundem em corpo humano e não humano. Por exemplo, na Grécia, o centauro apresentava corpo de cavalo e tronco humano; o minotauro, corpo de homem e cabeça de touro; as sereias ou mulheres aves mostravam parte do corpo mulher e patas de ave e, posteriormente, nas mitologias nórdica e celta, transfiguraram-se em mulheres metade peixe.
A metáfora animal delineia grande parte das características do ser humano, seja pelo caminho da antropomorfização (atribuição de características humanas a seres não humanos ou coisas), seja via zoomorfização (características animais atribuídas a seres humanos, deuses ou coisas).
As fábulas conferem lugar à animalidade, a fim de despertar no animal humano o reconhecimento de sua humanidade/animalidade em histórias moralizantes. Os bestiários, catálogos manuscritos produzidos por monges católicos que reuniam informações sobre animais reais e fantásticos, acompanhados de mensagem moralizadora, eram relevantes na baixa Idade Média.
René Descartes se valeu do racionalismo para argumentar sua tese do animal-máquina. Charles Darwin recuperou a questão da animalidade em seu discurso evolucionista, assim como os pensadores Georges-Louis Leclerc (conde de Buffon), Jakob Johann von Uexküll, Gilles Deleuze e tantos outros.
A metáfora animal tem sido empregada no decorrer da literatura e das artes, conforme pode ser constatado nos exemplos a seguir.
Os Saltimbancos
A obra dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, no conto Os Músicos de Bremem, inspirou o musical infantil Os Saltimbancos, autoria do letrista italiano Sergio Bardotti e do músico argentino Luis Enríquez Bacalov. Esse musical mostra uma alegoria política, em que o burro representaria os trabalhadores do campo; a galinha, a classe operária; o cachorro, os militares; e a gata, os artistas. O barão (o homem!), inimigo dos animais, é a personificação da elite, os “detentores do meio de produção”.
Commedia Dell’Arte
Na Commedia Dell’Arte, verifica-se outro exemplo perante a composição dos personagens: uma característica de animais aos humanos. Na visão do dramaturgo italiano Dario Fo, a maioria das máscaras faz alusão aos animais e suas formas, evidenciando o aspecto zoomórfico em sua tipologia. Dessa maneira, um homem pode ter fisionomias de animais não humanos, como um porco, um boi, um cão, entre outros, ressaltando sempre o aspecto psicológico caricatural do humano em relação à fisicalidade do animal não humano.
No Brasil, o monólogo O Porco, tradução de El Cerdo, do diretor e dramaturgo espanhol Antonio Andrés Lapeña, cujo texto original, Stratégie pour Deux Jambons, é do francês Raymond Cousse, esteve em cartaz em São Paulo (2006), no Centro Cultural São Paulo, com direção de Antonio Januzelli e atuação de Henrique Schafer. A peça mostra o depoimento de um porco na véspera do abate.
A crítica do jornalista Sergio Salvia Coelho, no jornal Folha de S. Paulo, dizia o seguinte: “Não há metáforas, porém, a crueza arquetípica da situação do porco cercado para a morte acaba remetendo ao que o público quiser: o holocausto, a condição humana e, por que não, a situação do ator que, em seu espaço mínimo, recria um sentido para a vida”. A reflexão sobre o espetáculo O Porco, levantada pelo jornalista, remete às questões puramente humanas, sem sugerir qualquer importância moral pelo animal porco, representado por Schafer.
Cãocoisa e a Coisa Homem
O espetáculo Cãocoisa e a Coisa Homem, do grupo curitibano Ateliê de Criação Teatral (ACT), texto e direção de Aderbal Freire Filho, protagonizado por Luis Melo, que esteve em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo (2002), aborda a relação do ser humano com o cachorro.
O personagem principal é um homem que atravessa diversas fases da história, acompanhado por um anjo ou por um cão, interpretados pelos atores do ACT. Luis Melo resume o espetáculo: “O homem humanizado pelo cão. Ele é capaz de perceber o que é o verdadeiro amor, sem cobranças, através da lealdade do animal”. O cão mais uma vez é o exemplo para discutir a moralidade humana e, como reflete Sergio Salvia Coelho em crítica na Folha de S. Paulo: “(…) atores podem dissecar a dinâmica do amor, com a higiene castrando o instinto, ou a solidão cosmopolita, na qual se finge que é de seu cachorro que se está falando”.
A Cabra ou Quem É Sylvia?
Em A Cabra ou Quem É Sylvia?, de Edward Albee, encenada no Teatro Vivo, em São Paulo, no ano de 2008, com direção de Jô Soares e atuações de José Wilker, Denise Del Vecchio, Gustavo Machado e Francarlos Reis, é contada a história de Martin, um arquiteto de sucesso no ápice da carreira, que tem uma vida familiar exemplar, com a amorosa esposa Stella e um filho. No dia de seu aniversário, Martin revela que está apaixonado por Sylvia, entretanto, Sylvia é uma cabra.
Albee desafia os espectadores a questionar sua própria moral diante de tabus sociais como infidelidade, zoofilia, pedofilia e incesto. O âmago da questão de A Cabra ou Quem É Sylvia? está na exposição da perda da razão da sociedade contemporânea. O crítico de teatro Luiz Fernando Ramos argumentou na Folha de S. Paulo: “O amor não tem limites, nem a imaginação de Albee. O bode está na sala pronto para o sacrifício”.
Ainda aqui, o enfoque é o drama humano acerca da moralidade social em relação a tabus, a percepção da identidade feminina no contraste entre a mulher Stella e a cabra Sylvia e a natureza arbitrária de normas e convenções sociais sobrepondo a bestialidade de Martin ao seu desgosto em relação à homossexualidade do filho Billy.
Não há valoração moral em relação ao drama sofrido pela cabra Sylvia em seu suposto relacionamento “consensual” com Martin. Não se levanta a questão sobre atos sexuais cometidos contra animais, que são atos forçados, de violência, diante da vulnerabilidade desses seres. Entretanto os demais personagens da obra de Albee suscitam a exposição da miséria e do sofrimento humano.
A arte lida com o sensível, com a experiência. E o teatro, como propõe o fundador do Teatro do Oprimido, Augusto Boal, indica um caminho ou uma capacidade de se colocar no lugar do outro, ampliando a visão de mundo pela assimilação de novas possibilidades.
Citados esses exemplos, é importante afirmar a necessidade de reconstruir o sensível na sociedade para além dos paradigmas pré-estabelecidos. Nesses novos tempos, a arte tem como função aflorar essa sensibilidade para um reconhecimento de que o ser humano não se limita à cultura da “natureza” baseada em instintos crus, mas em outras possibilidades perceptivas que ampliem sua consciência no tocante à consideração moral em relação ao próprio humano e ao não humano, propiciando também sua libertação e evolução mais abrangentes no contexto da bioética em relação às outras espécies.
Referências
COPSTEIN, Liège; SILVA, Denise A. Metáfora Animal e Especismo: Retórica do Poder no Contexto Pós-Moderno. Cadernos de Semiótica Aplicada (CASA) Capa v.12, n.1, UNESP, 2014
GUIDA, Angela. A poética da crueldade: um olhar no humano e no não humano. Santos Dumont, UFMG, 2011
M. AGUIRRE; A. STEBAN. Cuentos de La Mitología Vasca. Ediciones de la Torre, Madrid, 2006
*Marcya Harco é atriz, diretora de teatro e arte-educadora; fundadora integrante da Cia. Lúdica de Teatro e do projeto Vegan Vj Theatre; licenciada em artes cênicas pela Faculdade Paulista de Artes e pós-graduada em direção teatral pela Escola Superior de Artes Célia Helena
Fonte: Mimi Veg
Fotos e imagens: Reprodução
Fonte: Mimi Veg
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