Gado sendo conduzido para o abate (Foto: Daniel Garcia / Getty)
Por Anna E. Charlton e Gary L. Francione*
O saber convencional do Ocidente quanto à ética animal é que matar um bicho não é problema; o problema está em fazê-lo sofrer. Desde que o tenhamos tratado, e conduzido seu abate, de forma "humana", nada teremos feito de errado. Um exemplo convincente de tal crença é oferecido por cães e gatos, animais aos quais a cultura ocidental confere valor especial. Se alguém causa sofrimento a uma dessas criaturas, a pessoa é execrada.
Mas cachorros e gatos indesejados são rotineiramente "colocados para dormir" - abatidos - em abrigos, por meio de uma injeção de pentobarbital sódico. E a maioria das pessoas não se opõe a isso desde que o processo seja ministrado de forma devida, por uma pessoa treinada, e que sofrimento não seja infligido ao bicho.
Por que acreditamos que matar animais não seja moralmente errado em si? Por que acreditamos que a morte de criaturas não humanas não é um mal?
Antes do século 19, bichos eram em geral considerados coisas. Nem nosso uso nem o tratamento dado a eles tinha importância moral ou legal. Podíamos ter obrigações referentes a animais, como não causar danos à vaca do vizinho. Mas a obrigação era em relação ao vizinho proprietário da vaca, e não com a vaca.
Dizer que pensávamos nos animais como coisas não quer dizer que negássemos serem eles sencientes, ou conscientes em termos subjetivos, e que têm interesse em não experimentar dor, sofrimento ou perturbação.
Mas acreditávamos que podíamos ignorar tais interesses, porque os bichos seriam inferiores. Tínhamos o poder de raciocinar, e eles não. Éramos capazes de usar comunicação simbólica, e eles não.
No século 19, houve uma mudança de paradigma, e a teoria do "bem-estar animal" surgiu. Em um período relativamente curto, se considerarmos a lentidão com a qual grandes mudanças de pensamento costumam ocorrer, nós passamos a afirmar que rejeitávamos a ideia de animais como coisas e adotamos a ideia de que eles tinham valor moral.
Sofrimento
Papel importante nessa mudança de paradigma foi desempenhado pelo advogado e filósofo Jeremy Bentham, que argumentou em 1789 que, embora um cavalo ou cachorro adulto fosse mais racional e mais capaz de se comunicar do que um bebê humano, "a questão não é se eles podem raciocinar nem se eles podem falar, mas sim se eles podem sofrer".
Bentham afirmava que o fato de os bichos serem cognitivamente diferentes dos humanos - que tivessem mentes de tipo diferente - não significava que o sofrimento deles não importava em termos morais.
O filósofo argumentava que, moralmente, não havia justificativa para ignorar seu sofrimento por causa de sua espécie, da mesma maneira que não havia justificativa para ignorar o sofrimento dos escravos com base na cor de sua pele.
Mas Bentham não advogava deixarmos de usar animais como bens, apesar de defender a abolição da escravidão humana. Ele sustentava que era moralmente aceitável usar e matar outras espécies para os propósitos humanos, desde que as tratássemos bem.
De acordo com Bentham, os bichos vivem no presente e não estão cientes do que perdem quando tiramos suas vidas. Se os matamos e comemos, "isso nos beneficia e não os prejudica. Eles não sofrem das prolongadas antecipações de futuras misérias que nós sofremos".
Bentham sustentava que fazíamos um favor aos animais ao matá-los, desde que o fizéssemos de maneira relativamente indolor: "A morte que eles sofrem por nossas mãos comumente é e sempre será mais rápida, e por isso menos dolorosa, do que aquela que os aguardaria no inevitável curso da natureza... Que eles continuassem vivendo, pioraria nossa situação, e a situação deles não piora por estarem mortos".
Em outras palavras, a vaca não se incomoda que a matemos e comamos; incomoda-se apenas com a maneira pela qual a tratamos e matamos, e seu único interesse é não sofrer.
E é exatamente nisso que a maioria de nós acredita hoje. Matar bichos não é o problema. O problema é fazê-los sofrer. Se lhes propiciarmos uma vida razoavelmente agradável e uma morte razoavelmente indolor, nada teremos feito de errado.
É interessante que as posições de Bentham tenham sido endossadas por Peter Singer, que baseia diretamente no filósofo a posição que articula em Libertação Animal (1975). Singer afirma que "a ausência de alguma forma de continuidade mental" torna difícil compreender por que matar um animal não é "compensado pela criação de um novo animal que levará vida igualmente agradável".
Acreditamos que essa posição seja incorreta.
Capacidade de sentir
Dizer que um ser senciente - qualquer ser senciente - não é prejudicado por ser morto é decididamente estranho. A capacidade de sentir não é algo que se desenvolveu para ser um fim em si mesmo. Na verdade, ela é um traço que permite aos seres identificar situações nas quais sua sobrevivência esteja ameaçada. Ou seja, ser senciente é algo que permite a existência continuada.
Seres sencientes, porque são sencientes, têm interesse em continuar vivos, ou seja, eles preferem, querem ou desejam continuar vivos. A existência continuada é de seu interesse. Portanto dizer que um ser senciente não é prejudicado pela morte nega que esse ser tenha o exato interesse que sua capacidade senciente serve para perpetuar.
Seria análogo afirmar que um ser dotado de olhos não tem interesse em continuar vendo ou que cegá-lo não o prejudicaria. Animais apanhados em armadilhas usam as presas para amputar as próprias patas, causando-se imenso sofrimento a fim de continuarem vivos.
Singer reconhece que "um animal pode lutar contra uma ameaça à sua vida", mas conclui que isso não significa que o animal tenha a continuidade mental necessária para ter um senso de identidade.
Esse argumento gera uma questão automática, no entanto, por presumir que a única maneira pela qual um animal pode ser autoconsciente é a maneira autobiográfica que usualmente associamos a seres humanos adultos.
Essa é certamente uma forma de autoconsciência, mas não a única. Como apontou o biólogo Donald Griffin, um dos mais importantes etnólogos cognitivos do século 20, é arbitrário negar que os animais tenham alguma forma de autoconsciência, dado o fato de que animais que são conscientes em termos perceptivos devem ter consciência de seus corpos e ações - e devem vê-los como diferentes dos corpos e ações de outros animais.
Mesmo se criaturas de outra espécie viverem no "eterno presente" em que Bentham e Singer acreditam que vivam, isso não significa que não sejam autoconscientes ou não tenham interesse em uma existência continuada.
Os bichos ainda teriam consciência de si mesmos a cada instante do tempo, e teriam interesse em perpetuar essa consciência; teriam interesse em chegar ao próximo segundo de consciência.
Seres humanos que sofrem de uma modalidade específica de amnésia podem perder acesso a memórias ou a capacidade de pensar sobre o futuro coerentemente, mas isso não significa que não sejam autoconscientes a cada momento ou que o fim dessa autoconsciência não seria um mal.
É hora de repensar essa questão. Se vamos matar um bicho - por mais indolor que seja o método - como questão moral, talvez isso deva nos levar a pensar mais se o uso dos animais é moralmente justificável, e não apenas se seu tratamento é ou não "humano".
Porque os animais são propriedades, e em geral só protegemos os interesses dos animais se o custo/benefício da proteção nos interessa, é uma fantasia imaginar que tratamento "humano" seja um ideal atingível, de qualquer forma.
Assim, se levarmos a sério os interesses dos animais, realmente não podemos separar a reflexão sobre a moralidade de usá-los da reflexão sobre o tratamento que damos a eles.
*Anna E. Charlton é professora adjunta de direito na Universidade Rutgers (EUA) e cofundadora da Clínica Rutgers de Leis de Direitos Animais. Seu mais recente livro, coescrito com Gary Francione, é Animal Rights: The Abolitionist Approach (2015)
*Gary L. Francione é professor de direito na Universidade Rutgers, onde leciona teoria e leis dos direitos dos animais, e professor honorário da Universidade de East Anglia (Reino Unido). Seu mais recente livro, coescrito com Anna Charlton, é Animal Rights: The Abolitionist Approach (2015)
Fonte: Folha de S. Paulo (via AEON)
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