PARTE 1
Por Paulo Furstenau*
Primeiro de janeiro de 2017. Confesso que nunca consegui entender o significado da letra da música Hallelujah, do Leonard Cohen. Já li e reli algumas vezes, em inglês e português, mas não adianta. Não sei se por alguma incapacidade minha ou simplesmente porque não seja uma música para entender mesmo, tipo os filmes do David Lynch. Passei então a ouvi-la como se fosse um mantra, sem procurar significados.
Mas nos últimos tempos, e hoje principalmente, ela significa muito para mim. Basta olhar no primeiro dicionário on-line o que significa ‘aleluia’: “cântico de alegria, de louvor ou ação de graças”. Do alto da minha falta de crença em um ser superior, esse cara da foto me faz viver em estado de graça permanente há quase um ano.
Ele tem um câncer agressivo e incurável na boca. Segundo as previsões mais otimistas, ele poderia chegar no segundo semestre de 2016. Mas abanou o rabo na cara de todas elas e emplacou 2017 parafraseando o Simple Minds: alive and wagging (vivo e abanando). Ele quase partiu uma vez, mas deu uma guinada surpreendente e se recuperou. Continua precisando de diversos cuidados, mas está sempre feliz, sem dor, com apetite, carinhoso, educado, parceiro e a melhor companhia que já tive na vida.
Por isso, dedico a ele essa música. Essa versão específica, pois também gosto dela na voz do Rufus Wainwright, mas Leonard Cohen é Leonard Cohen. E essa apresentação, perfeita, é de revirar todas as entranhas (inclusive eu teria vendido um rim para tê-la visto ao vivo) e arrepiar a alma. Uma experiência quase mística, assim como é a convivência com o Areias e toda sua força, que certamente não é apenas física.
Obrigado por ter me escolhido como pai!
PARTE 2
Vinte e dois de janeiro de 2017: um ano que esse cara veio das ruas de uma cidadezinha do Vale do Paraíba para o Centro de Adoção da Associação Natureza em Forma, na capital paulista. Resolvemos trazê-lo porque ele tinha uma ferida na boca que não estava sendo cuidada pelos frentistas que o alimentavam. Aqui em São Paulo, ele seria diagnosticado, tratado, castrado, vacinado, vermifugado, identificado e colocado para adoção. O diagnóstico foi um câncer agressivo e inoperável, devido à sua localização. Por isso, ele não foi colocado para adoção e meu namorado resolveu ficar com ele.
Morávamos juntos e me animei com a ideia de ter um cachorro “fixo” em casa (a foto acima foi a primeira que tirei lá) – por mais que eu adore cachorros, em mais de um ano como voluntário na ONG de adoção e convivendo com animais que iriam para outras casas, acabei me desapegando e, por mais que gostasse mais de um ou de outro, ficava feliz quando iam embora para uma nova vida. Mas até então, mesmo ganhando o status de um morador fixo, para mim ele era mais um cachorro bonitinho e bonzinho, que eu ia ajudar a cuidar, inclusive com os cuidados especiais requeridos pelo tratamento paliativo, isso sim algo inédito na minha vida.
Como trabalho em casa, passávamos o dia inteiro juntos - eu levava para passear, dava comida e remédios, limpava a ferida no rosto. Areias tinha circulação livre pela casa, exceto no quarto, onde meu namorado não o deixava entrar por causa do sangue que eventualmente saía da boca e da secreção que escorria pelo olho (por um buraco – que hoje são buracos – feito pelo tumor). Faltou dizer que eu trabalho em casa e sentado na cama, pois levo a sério a denominação do meu instrumento de trabalho: laptop. E é claro que, quando o dono da casa ia trabalhar, eu colocava a caminha do Areias (que ficava na sala) do meu lado e lá ele ficava o dia inteiro, até quando chegava perto do horário de o outro humano da casa retornar e eu colocava a caminha de volta na sala.
Até que em uma manhã, enquanto ainda estávamos em nossa caminha humana, Areias foi chegando pé ante pé (ou melhor, pata ante pata) no quarto. Parou ainda na porta, ficou um tempo olhando para mim (e eu fingindo que dormia); olhou então para meu namorado, que realmente dormia; olhou de novo para mim mais um tempo; deu meia-volta e saiu como entrou, de fininho. Uma hora depois, meu namorado levantou, se arrumou e saiu para o trabalho. Segundos após, Areias entrou novamente no quarto - mas dessa vez sem a menor cerimônia, todo pimpão -, foi até onde estava minha cabeça na cama, deu seu grunhido (por conta do tumor na boca, ele emite um som constante semelhante a um ronco ou rosnado), grrrrrrr, e ficou abanando o rabo, olhando para mim, dessa vez com a cara quase colada na minha. Dizem que não somos nós que escolhemos nossos animais, eles é que nos escolhem. Foi naquele dia que descobri a veracidade disso, esse figura me conquistou de vez e eu pensei na mesma hora: “Fudeu, ganhei um filho”. (E a cena de ele entrar no quarto depois de estarmos enfim sós se tornou uma constante a partir daí.)
E disse “fudeu” porque minha relação com o humano da casa era (e é) bem complicada. Mas quando ele me enchia, eu simplesmente fazia as malas e voltava para o Rio de Janeiro, minha terra natal. Dava uma semana, no máximo duas, ele surgia com cerca-lourenços via WhatsApp e eu voltava para um novo ciclo de dores e delícias. Com o Areias, essa dinâmica deixou de ser tão simples, e eu deixei de fazer as malas e, que ironia, justamente agora que era um recém-vegano, passei a ter de engolir sapos. Como meu consorte era o tutor “oficial” do Areias, vetava todos os meus pedidos de levá-lo para um lugar só nosso. E comecei então a tramar o sequestro. E, caso nosso paradeiro fosse descoberto (eu precisava continuar em São Paulo, pois a assistência médica dele é aqui), tinha comigo material comprometedor que usaria como chantagem se ele tentasse tirar meu filho de mim. Eu era praticamente a Sally Field no clássico do Supercine Nunca sem Minha Filha.
Mas a superlua veio e iluminou aquela cabeça e eu não precisei sequestrar nem chantagear, apenas assinar um contrato de aluguel. E eu, do alto dos meus 30 e tais e já tendo morado com meus pais, namorados (um de cada vez porque não sou desses), amigos, pensão e quartos alugados (flat nunca, porque é caro), assinei pela primeira vez na vida um contrato de aluguel. Sim, aluguei todo um apartamento para ficar com meu filho - e o universo se mostrou a nosso favor, pois o apê em si, o preço, a localização, tudo é perfeito tanto para mim quanto para ele.
E já vamos para nosso terceiro mês aqui. Às vésperas de me mudar, saí para beber. Virando a esquina do bar, dois noias me pararam. Eu estava de mochila, que continha meu computador, meu ganha-pão. Instintivamente, segurei com as duas mãos nas alças em meus ombros e disse “NÃO!”. Foi quando um dos noias me mostrou uma faca. E eu, do alto de minha embriaguez, só consegui agarrar ainda mais forte nas alças da mochila e disparar, bem alto, “NÃO! NÃO! NÃO!”, olhando na cara do noia da faca, enquanto o outro tentava puxar a mochila do meu ombro. Daí minhas recordações vêm em flashes. PUF! (É o som do flash das minhas recordações.) Na cena seguinte, após minhas insistentes e monossilábicas negativas e as insistentes tentativas deles em arrancar minha mochila, eu estava no chão – sempre agarrando as alças em meus ombros. PUF! Um carro surgiu parado bem na minha frente. PUF! Eu estava dentro do carro. PUF! O motorista, um tatuado bonitão (eu estava trêbado e assustado, mas não cego), perguntou o que eu estava devendo a eles (era eu com meus “NÃO!” e os noias dizendo que eu estava devendo a eles). Eu disse que eles eram noias e que eu estava bêbado, que não sabia quem eram. PUF! Uma travesti com o cabelo igual ao da Cleo Pires apareceu na janela do carro e disse para ele me deixar no motel adiante. PUF! Eu estava na recepção do motel, descobrindo que minha mão estava cheia de sangue enquanto abria a carteira. O tatuado bonitão perguntou do carro: “Você está bem? Você tem dinheiro?”. Sim, eu tinha, eles não levaram nada, nem o celular. Agradeci, disse a ele que havia salvado minha vida e ele foi embora, deixando um “sai daí só amanhã!”. Na verdade, não sei quem me “salvou”. Não consigo me lembrar de como os noias foram embora sem levar nada. Se um dia escrever minha biografia, direi que a travesti com o cabelo igual ao da Cleo Pires chegou dando uma voadora nos dois, algo meio Almodóvar, meio Tarantino, eles saíram correndo, o carro parou e o tatuado bonitão me estendeu a mão dizendo “come with me if you wanna live” (e pensando bem, ele até lembrava mesmo o Michael Biehn).
Mas as recordações daquela noite só me vêm mesmo em PUFs, e como aqueles espíritos sombrios me largaram é uma cena que ficou faltando. O maior mistério, porém, logo passou a ser como eu escapei ileso não apenas materialmente, mas também fisicamente. Tem bandido que mata até quem não reage, como que eles pouparam um louco que reagiu veementemente? Terá sido justamente por isso, não esperavam algo do tipo e não souberam como lidar? Esqueceram que tinham uma faca na mão? Era de brinquedo? Estavam mais loucos de crack do que eu de caipirinha? Ou eles eram apenas dois turistas pedindo informação e o que eu achei ser uma faca era, na verdade, um mapa, e eles diziam que eu lhes devia uma informação e eu grosseiramente gritava que não a daria até cair sozinho no chão de tão bêbado?
Bom, narrei toda essa vergonhosa passagem da minha vida só para contar que poucos dias após minha mudança, estava eu passeando com o Areias em nossa nova vizinhança quando um cracudo (o quase assalto foi no centro da cidade, perto da República; agora eu moro nos Campos Elíseos, também no centro, só que do ladinho da Cracolândia, veja só) perguntou para mim o que ele tinha (quando veem as feridas na cara do Areias, várias pessoas, inclusive os noias, perguntam o que ele tem). Eu respondi que era câncer. E ele replicou: “Sabe por que ele está com você?”. “Por quê?”, eu quis saber (quis mesmo, me interesso pela sabedoria dos alterados de consciência). “Para você dar todo o seu amor para ele e ele dar todo o amor dele para você. Foi Deus que colocou vocês juntos, vocês já têm o reino dos céus.” E eu, em meu agnosticismo, achei bonitinho. “Isso aí”, eu disse, fazendo um joinha com o polegar e pensando: “Obrigado, seu noia. Se todos os noias fossem iguais a você...”.
Chegando em casa, enquanto eu trabalhava (no laptop que defendi com minha vida) e o Areias roncava acordado ao meu lado, pensei que aquilo tinha sido a confirmação de algo que eu já suspeitava havia alguns dias. Os noias não me enfiaram a faca porque eu não podia morrer agora. Porque sou eu quem deve cuidar do Areias até o fim. Quem me salvou, afinal, foi ele, o universo não me deixou morrer porque eu não podia deixá-lo. Olhei então para meu anular da mão esquerda, que ficou torto em meu entrevero com os noias (e segue torto até agora, e continuará torto para sempre, como recordação daquele episódio mal lembrado), e repeti: “Isso aí”. (Bom, sempre haverá a possibilidade de a faca ser de brinquedo e, na verdade, o que me salvou mesmo naquela noite foi, ironicamente, o álcool – me salvou de ter sido feito de trouxa. Mas isso eu nunca saberei, então vamos nos ater a essa hipótese mais metafísica e digna.)
Como eu disse, muitos perguntam o que ele tem (já perguntaram se ele foi atropelado, picado por cobra, picado por abelha, se brigou com outro cachorro). Alguns dizem “tadinho”, “ai, judiação”. E isso me irrita. Ele não tem nada de tadinho, e certamente é muito mais forte que os tontos que dizem isso. Areias está abanando o rabo na cara de todas as previsões, que diziam que ele devia chegar no segundo semestre do ano passado. Ele quase partiu uma vez (coincidentemente, durante o par de semanas em que fiquei longe, tramando seu rapto), quando deixou de comer e beber e era alimentado e hidratado por seringa; deixou de andar e era preciso levá-lo para um jornal para fazer as necessidades; e ficou cego, até que (coincidentemente, dias após eu retornar) voltou a comer e beber, andar e enxergar. E emplacou 2017 e está completando aniversário de vida nova.
Ah, pelo menos você já está preparado, né? (Não, ninguém chegou a me indagar isso, mas coloco aqui essa pergunta hipotética como um recurso narrativo para enumerar a seguir alguns momentos reais vividos por nós dois.) Porra nenhuma. Quando ele partir, será uma porrada tão grande como se ele tivesse três meses de idade, saúde perfeita, 20 anos de vida pela frente e tivesse sido atropelado. Porque ele já mostrou que é foda e não se entrega fácil e isso meio que me acostumou mal, já acho que passaremos outro(s) Réveillon(s) inesquecível(is) juntos. Porque quando saio de casa, por uma hora que seja, já fico com saudades. E sei que chegará o dia em que não o verei mais por muito mais que uma ou algumas horas, mas ele me ensinou na prática outro clichê da vida: aproveitar o presente. E eu, que vivo pensando no que vai acontecer no futuro próximo, no futuro médio e no futuro distante (principalmente neste último), me vejo obrigado a não pensar em futuro nenhum e viver o tempo atual, e cada segundo ao lado dele é... um presente! Porque cada vez que eu olho para ele, cada vez mesmo, meu corpo se enche de endorfina e meu coração se enche de amor – frequentemente fico parado olhando para ele com cara de Jack Nicholson na pele do Coringa. Porque às vezes ele tem dificuldade em dormir e eu entoo para ele um mantra que aprendi com uma amiga e... não é que ele dorme? Eu, que tenho um furacão dentro da minha cabeça (quem está lendo este texto, especialmente este parágrafo, já deve ter percebido), consigo parar por uns minutos, entoar um mantra e fazer outro ser vivo dormir. Porque ele sabe que a casa é dele e escolheu até onde devem ficar suas camas (sim, ele tem três). Porque todos os dias me jogo no chão e fico deitado com ele (geralmente de conchinha), e às vezes acho que ele pegou no sono e me levanto lentamente, e ele começa a abanar o rabo. Porque ele não é um cachorro que só falta falar, porque ele realmente fala. Seus roncos também são uma forma de comunicação: por vezes, eles mudam de tom – ou surgem, quando ele está em silêncio – de acordo com a situação ou algo que eu digo. Porque outro dia, após mais de 30 anos, cataplof, caí da cama enquanto dormia, como um saco de batata de 82 quilos, em cima dele (uma de suas camas é ao lado da minha). E ele estava deitado, de cabeça levantada (não sei se já estava acordado), me olhando. Fez aquele movimento de impulso com a cabeça, de cachorro que está tentando se levantar, mas não consegue. Foi quando vi que minha perninha fina e delicada (para o leitor que não me conhece pessoalmente: estou sendo irônico) estava em cima do rabo dele, e ele não gritava (ao contrário de mim, que caí gritando de susto), rosnava ou chorava, apenas tentava educadamente tirar o rabo de baixo da minha perna. Saí de cima e ele o abanou, me olhando, parecendo dizer: “Bom dia para você também, seu loki”. Porque quando troveja e ele não está perto de mim, ele aparece em até cinco segundos. Quando estou cozinhando em minha pequena cozinha, muitas vezes no meio da madrugada, fazendo malabarismos para dar conta de todas as panelas em atividade, ingredientes por cima de todos os lugares e louça para lavar, tudo ao mesmo tempo, e cai um trovão, eu digo comigo "Areias em 3, 2, 1...", e eis que surge o Areias e deita no meio da cozinha, e eu tenho que ficar com ele entre as pernas e nem me locomover mais, me mantendo parado e alcançando tudo com as mãos, como o Lula Lelé ou um personagem de filme do Jacques Tati. Porque me sinto um privilegiado em cuidar dele, em ter recebido esse presente da vida, de ser eleito o pai da criatura mais linda e especial que já conheci. Porque se não fosse a doença dele, nós nunca o teríamos trazido para São Paulo, pois a ONG não faz resgates, apenas em situações excepcionais como acidentes e doenças – no caso, foram o buraquinho no olho e a ferida na boca que chamaram a atenção e foram seu carimbo no passaporte para a capital. Ou seja, se ele fosse saudável, não haveria feridas, ele não teria sido trazido e muito provavelmente, naquela cidadezinha erma, viveria o resto da vida nas ruas sem nunca ter um lar ou receber carinho. Ou seja, por causa do câncer, ele vai viver menos, mas graças ao câncer, teve sua vida cruzada com a de alguém que o ama e que ele ama de volta. Vai viver menos, mas com amor. Porque embora ele esteja doente, conviver com ele é a maior alegria que já tive na vida. Porque, com meu agnosticismo mas sempre crente em energia, ele me fez retomar contato com o pessoal do lado de lá, quando vou semanalmente na Asseama, um centro kardecista para animais (São Paulo, eu te amo), para ele receber passe a distância e eu trazer garrafa de água fluidificada para ele beber. Porque o ronco dele já faz parte da trilha sonora da minha vida. Porque em outro de meus porres, já em nossa casa, abracei a privada e mandei bala. Larguei-me então no chão (ultimamente, o chão tem exercido estranha atração sobre meu corpo), em meio a um monólogo de bêbado, e, pouco depois, eis que Areias, que estava deitado confortavelmente em sua caminha, aparece e se deita do meu lado. Porque noutro dia, meu namorado apareceu num daqueles dias, já causando perturbação, foi fazer carinho no Areias e ele fez algo que eu nunca havia visto: rosnou e avançou nele. O Areias, a criatura mais doce que já vi, rosnando e avançando em alguém. "Ele está com dor?", o chato perguntou. Passei então a mão onde ele tinha quase encostado, para checar, e - adivinhe - o Areias abanou o rabo. Porque ele é meu filho, meu melhor amigo e quem eu mais amei na vida. Porque ele é meu parça. Porque somos praticamente o Tonho da Lua e o Cachorro de Areias.
No texto das postagens das fotos e vídeo que fiz sobre seu resgate, escrevi no final que ele estaria em breve disponível “para ser adotado por uma família que o acolha e cuide como ele merece”. Nunca, em meus mais loucos sonhos e hipóteses, passou pela minha cabeça naquele momento que ele faria tanta bagunça na minha vida, mudaria minha relação homoafetiva, adiaria a continuidade do meu projeto de viajar pelo mundo, me faria alugar um apartamento, e que eu é quem seria essa sua família. Bem, acho que tenho feito um bom trabalho nos tais acolhimento e cuidados. Mas certamente ele tem se saído ainda melhor nisso.
"Apesar de conhecer a jornada e para onde ela leva, eu a aceito e saúdo cada momento", disse a personagem da Amy Adams em A Chegada (Arrival, 2016). Quando vi esse filme meses atrás, ao lado do Areias, me identifiquei completamente com essa frase e seu contexto. Desde 12 de maio, dia em que meu filho passou a não estar mais fisicamente ao meu lado, posso citá-la com ainda mais conhecimento de causa. O vazio é avassalador e até hoje me sinto literalmente despedaçado, mas isso não chega nem perto da gigantesca felicidade que foi conviver por pouco mais de um ano com a criatura mais especial que tive a alegria e privilégio de conhecer. Viveria tudo de novo e de novo e de novo, infinitamente.
Quanto à partida, felizmente não aconteceu o que eu mais temia. Ele se foi no momento dele, e abanando o rabo até o último dia; partiu exatamente como viveu: um lorde iluminado. Ele amanheceu ruinzinho, cambaleante, caiu na rua. Liguei para todos os veterinários que o conheciam. Peguei o nome de uma nova medicação, enquanto não conseguia que alguém viesse vê-lo. Eu não quis buscar o remédio porque não queria deixá-lo só, nem por 30 minutos que seria minha ida e volta – não porque esperasse o pior, mas porque temia que ele caísse e batesse com a cabeça. Pedi para deixarem o medicamento em casa. Nos cinco minutos em que desci para pegar e subi de volta, ele se foi.
Quando o encontrei, estava na mesma posição que eu o havia deixado, de boca e olhos abertos (bom, com a boca aberta ele já ficava sempre fazia um tempo, por conta do tumor). Cheguei a dar a medicação pela seringa, e só vi que algo estava errado quando ele não fez o movimento de engolir. Mesmo assim, como ele havia me acostumado mal com sua força extraordinária e para mim aquela piora era apenas uma crise, que passaria como tantas outras haviam passado (dois meses antes, ele tinha superado até uma bicheira), eu o chamei, passei a mão nele, sacudi, coloquei minha mão na frente da boca, meu ouvido no peito. Só tive a certeza quando o levantei e sua cabeça desabou.
Em relação àquele corpo então vazio, minha ideia era cremá-lo e jogar as cinzas no mar, como eu costumava querer que fizessem comigo também. Anos atrás, porém, quando vi uma personagem de minha série preferida, Six Feet Under (A Sete Palmos), pedir para ser enterrada diretamente na terra, sem caixão ou cimento, como uma forma de voltar para a natureza, achei bonito e cogitei essa possibilidade para mim. Meses atrás, em 12 de maio, me dei conta de que estava mais preparado para minha morte do que para a partida do meu filho. Cheguei a chamar um serviço particular de cremação de animais, para poder ficar com as cinzas, e já estava sentado com o corpo dele embrulhado e embalado no meu colo, quando me deu um estalo e me lembrei dessa alternativa.
Eu ia enterrá-lo, e tinha o local perfeito: o sítio de uma amiga, que inclusive participou do resgate dele comigo. Liguei para ela e pedi para enterrá-lo lá, cancelei a cremação em cima da hora e botei o pé na estrada com meu namorado. Foi a melhor decisão que eu poderia tomar, e o melhor local que aquele corpo consumido pela doença, mas elevado pela alma que ali habitou, poderia ficar: na terra do sítio da Nina Rosa, uma das maiores ativistas da causa animal no Brasil, cuja ONG (Instituto Nina Rosa) produziu material educacional importantíssimo – o mais conhecido deles, o documentário A Carne É Fraca, conscientizou várias pessoas sobre a realidade da indústria pecuária, fazendo muita gente se tornar vegetariana ou vegana. O sítio é um pequeno santuário, um lugar cheio de amor pelos animais, onde alguns bichos de fazenda, além de cães e gatos, vivem livres e bem cuidados como deve ser, até morrerem de velhos. Plantamos por cima de sua sepultura um pé de paineira – Areias virou semente. Fiz uma lápide improvisada com um pedaço de madeira e escrevi umas palavras, colocando como data de "nascimento" o dia em que o resgatamos - ficou meio tosco pela minha falta de jeito, mas meu filho não sabe ler mesmo, o que ele sabe é o quanto foi amado, que foi o que registrei ali. Quando Nina foi ao sítio após o enterro, ainda colocou por cima da terra uma imagem de Nossa Senhora e uma de São Francisco, mais uns cristais - para espalhar meu amor pelo Areias para os outros animais, segundo ela.
E por falar em filmes e séries, outra que me marcou muito foi Fringe, cuja trama é basicamente sobre dimensões paralelas, linhas do tempo alteradas, viagens no tempo e o amor de um pai capaz de tudo pelo filho. Eu fiz até pouco, pensando bem. Aguentei brigas constantes em uma relação cujo convívio diário estava insustentável, para não sair de perto do meu filho; após quase 40 anos de idade, tive que virar adulto em duas semanas, quando procurei e encontrei um apartamento para alugar e ficar com ele, em paz; segurei meu ódio e blindei a nós dois contra alguns vizinhos escrotos que tapavam o nariz quando estavam no elevador com a gente (sim, há pessoas assim, que viam um cachorro com a cara cheia de buracos, sabiam que tinha um câncer terminal e lutava pela vida, mas faziam questão de mostrar seu incômodo com o odor da secreção que saía dele); ignorei os olhares, comentários e apontadas de dedo na rua (se bem que depois de um tempo, quando eu ouvia “nossa, olha a cara dele!”, eu passei a responder “nossa, olha a sua!”). Foi nada diante do que ele fez por mim: lutar ferozmente contra a morte e me transformar em outra pessoa.
No último capítulo de Fringe, que vi quando o Areias já havia partido, um personagem queria atravessar um portal no tempo junto com seu filho, e disse ao protagonista, o cientista Walter Bishop (o pai que citei acima), que queria estar segurando a mão do menino nesse momento. E Walter responde: “Isso é ser pai”. Uma das coisas que eu fazia com meu filho era isso, ficar segurando a mão dele, simplesmente segurando e também passando o polegar por cima e apertando a almofadinha da pata; quando eu fazia isso, ele me olhava e abanava o rabo, principalmente quando eu lhe dizia algo.
Mais adiante, nos momentos finais do último capítulo, Walter diz a seu filho: “You are my favorite thing, Peter. My very favorite thing” (“Você é minha coisa mais preferida”). Pena que quando vi essa cena, meu filho já tinha partido para outro lugar (mundo? Planeta? Vida?), eu queria ter dito a ele pessoalmente essa frase, várias vezes. Mas ele sabe – sempre soube - muito bem disso. Você é minha coisa mais preferida, Areias.
Areias se foi fisicamente, mas me ensinou muita coisa para eu guardar apenas comigo. Por isso, contei toda essa história e, a despeito de toda minha discrição, expus passagens pessoais da minha vida porque tenho um objetivo: que seu legado seja o começo de uma nova vida para muitos animais especiais como ele (bom, a expressão ‘animal especial’ chega a ser redundante, pois todos são especiais, mas quando digo isso, estou me referindo aos doentes, deficientes e idosos - leia aqui matérias sobre eles). Quero mostrar a quem leu até aqui como podemos trazer para nossa vida um ser que irá transformá-la para sempre e o que isso implica em termos de responsabilidade.
Em primeiro lugar: adote, não compre. Você compra seus amigos no shopping? Comprou seu filho de um criador? Pois é, amor não se compra. Além disso, a criação de cães e gatos de raça nada mais é que uma indústria que visa unicamente ao lucro e não está nada interessada no bem-estar ou saúde dos animais – pelo contrário, as cadelas são obrigadas a procriar desde o primeiro cio e procriar, procriar e procriar literalmente até morrer. E com os filhotes, não é diferente: ficam presos e amontoados como mercadorias, têm diversos problemas de saúde causados pelas péssimas condições em que vivem e até mesmo nascem com defeitos físicos devido a cruzamentos malsucedidos, realizados para criar filhotes perfeitos. Quem compra animais está financiando essa indústria de maus-tratos (leia aqui diversas matérias a respeito, e não deixe de ler especialmente a história da Bionda). Ademais, já existem cachorros e gatos aos montes nas ruas, sofrendo diariamente com fome, sede, frio, calor, doenças, violência e acidentes: qual o sentido de negar a eles a oportunidade de uma vida nova para, em vez disso, comprar um animal de raça? O que é raça para você? O que significa um pedigree? Animais são vidas, e não símbolos de status. Se isso é importante para você, nem compre um animal, pois seus valores são bem equivocados. Compre um carrão, um relógio de milhares de dólares, joias e outros tais. E procure um psicólogo.
E só adote se considerar que aquele animal para quem você está abrindo sua casa é um membro da família, um filho. Se você for viajar, vai levá-lo com você ou deixá-lo aos cuidados de alguém responsável durante o período. Se for mudar de endereço, vai levá-lo com você. O novo prédio não aceita animais? Então você vai procurar outro lugar para morar. Vai mudar de cidade ou mesmo país? Você vai levá-lo junto. Foi demitido? Você vai se virar para pagar suas contas e as dele. (Eu, por exemplo, tinha trabalho, mas as despesas aumentaram após a mudança de endereço e cancelei meu plano de saúde.) Você abandonaria seu filho se fosse viajar, mudar ou perder o emprego? Pois é. E tem aquelas pessoas ainda que quando vão ter um filho humano, abandonam (atenção: dar = abandonar, é a mesma coisa, tá?) o animal. Se você tiver um segundo filho, vai abandonar o primeiro? Pois é. Conheceu uma pessoa, se apaixonou, e ela não gosta ou tem alergia a animais? Abandone a pessoa. Se não gosta de animais, é porque não presta, pode acreditar. Se tem alergia, o problema é dela: mande se tratar para poder conviver com seu animal ou mande simplesmente se catar.
Tenha em mente ainda que o animal que você adotar poderá ficar doente ou deficiente (ou ambos, vai saber), e certamente ficará velho. E você só irá adotá-lo se estiver disposto a cuidar dele da melhor maneira que houver até o final. E cuidar envolve fazer de tudo. Se o Areias tivesse ido parar com certos tipos de pessoas, certamente teria sido sacrificado na primeira ferida. Um amigo comentou que uma vizinha sacrificou seu cachorro porque ele tinha um câncer nos ossos e consequente dificuldade de locomoção, e disse para ele que o bicho “dava muito trabalho”. Sim, dá muito trabalho até saudável, mais ainda se estiver doente.
Voltando ao meu exemplo: dá um puta trabalho. Quando eu acordava, passava cerca de uma hora limpando o Areias de secreção, sangue, crostas de secreção seca etc. E mais algumas vezes durante o dia, porque quando eu terminava de limpar, a secreção continuava saindo, o trabalho não terminava. Passava pano no chão diariamente, para limpar a secreção que caía e secava, e se ficasse por um tempinho a mais, entranhava e eu tinha que esfregar com as duas mãos para sair. E essa secreção tinha um cheiro - que, por vezes, dava até onda. Quer ter um animal e não ter trabalho? Compre (aí pode até comprar mesmo) um de pelúcia.
A despeito do aspecto de sua cara, deformada e com buracos feitos pelo tumor (a foto acima, uma das últimas dele, tirei para mostrar à veterinária como estava o mais recente buraco), exames veterinários indicavam que ele não sentia dor, e eu via como ele estava sempre feliz, abanando o rabo, pedindo carinho, se alimentando bem (e ficava feliz da vida e abanava o rabo freneticamente quando ganhava o bifinho-veggie-complex-superpremium-gourmet-de-sabor-inigualável), curtindo nossos rolês pelo quarteirão, se esfregando na plantinha que ele gostava, até seu último dia. E se ele resistiu tanto é porque não queria morrer, e se não queria morrer, é porque estava realmente feliz com a vidinha que tínhamos. Muitas pessoas, porém, já o teriam colocado para dormir na primeira ferida que surgiu, pois só teriam enxergado o “trabalho que dá” e não dariam importância ao fato maior da enorme energia vital e alegria que ele tinha – e compartilhava. Se você adotar um animal e ele também tiver uma doença terminal, faça o inverso: encare firme todo o trabalho que dá e valorize apenas o amor que o bicho dá em retorno.
E, claro, você sempre pode adotar um animal já doente, deficiente ou idoso. Acredite: se você fizer isso, sua vida mudará tanto quanto a dele.
Veja abaixo o vídeo de quando pegamos o Areias em Areias. A foto que abre esta postagem é tirada daí, no momento em que dizem meu nome e ele olha exatamente para mim. Terá sido na verdade já ali que ele me adotou? Será que ele pensou: “Ah, então é de você que eu tenho que cuidar?”? Esse momento pode chegar para você, também. Adote! Adote um animal especial!
*Paulo Furstenau é jornalista voluntário da Associação Natureza em Forma
Cara... Que história linda. Me identifiquei em muitas partes.
ResponderExcluirTenho uma cachorrinha, também de resgate, que ha um ano fomos contempladas com uma doença rara. Ela tem seus picos e nunca vai sarar. Nesse momento, está aqui deitada na cama comigo, roncando, e eu com insonia. Com trovões, só falta entrar na minha barriga.
Mas é minha vida! Ja gastei horrores com os tratamentos. Ja me despedi umas 3x, dizendo que ela já poderia ir embora, que a missão de me ensinar o amor já havia sido cumprida, para o dia seguinte ela amanhecer melhorzinha, me dando forças para continuar... Amigo, sei que não é fácil. Nem sei dizer quantas vezes me emocionei lendo a história de vocês. Só sei que diante de tantas adversidades, você é um abençoado por ter permitido que o Areias fizesse parte da sua vida. Muita luz em sua vida.