O pediatra que receita natureza para a saúde das crianças

Crianças e adultos no Jardim Botânico do Rio de Janeiro (Foto: Ian Trower / AFP)


Obesidade? Agitação? Hiperatividade? Dificuldade no aprendizado? O pediatra Daniel Becker, do Rio de Janeiro, diz que não é muito fã de remédios para tratar desses males. Diante do jovem paciente e da família, ele saca seu bloquinho de receituário e prescreve um passeio no parque, uma sessão de brincadeiras na terra ou uma tarde na praia. Para o médico, o contato com a natureza é uma forma de compensar a artificialidade da vida contemporânea nas grandes cidades. Ele diz que a reconexão com os espaços naturais faz bem para as crianças, para os adultos e para a própria conservação ambiental. 

Época – Quais são as evidências científicas de que o contato com a natureza é importante para as crianças?

Daniel Becker – Antes de pensar em evidências, devemos debater por que precisamos delas para promover o retorno da criança à natureza. Sempre que dou palestras, peço às pessoas para imaginarem crianças saudáveis, e todas pensam em crianças na praia, no parque, num ambiente natural. Isso porque a natureza está em nós. Não somos robôs nem de plástico. A urbanização extrema nos afastou da natureza. Viramos seres que podem passar a vida inteira sem encostar em nada natural, a não ser que cumprimente alguém. Os carros, os utensílios, as peças de casa e do escritório são sintéticos. E todos nós associamos a saúde à natureza. Ela está conectada a nossa alma. Isso é a biofilia, a atração que sentimos por outros seres naturais. É pena que a gente precise de evidências científicas para um coisa tão óbvia. Há várias evidências na educação, na medicina, na neurologia - não só para as crianças, mas para os adultos. Na pediatria, temos mais evidências de que a natureza melhora o desempenho da memória, o sono e a imunidade, reduz alergias, facilita o aprendizado. 

A natureza é o lugar de excelência para o livre brincar. Essa brincadeira é essencial para a criança desenvolver habilidades de criatividade, interação em grupo, resolução de problemas, avaliação de risco, entre outras. A atividade física também é melhor na natureza. E ainda a natureza oferece uma visão antinarcisista. É um jeito de compensar essa posição de ser o centro do mundo, que é incentivada por uma educação de pais que não estabelecem limites. A natureza, com suas maravilhas como uma bela cachoeira, tira a criança do próprio narcisismo e a coloca diante de uma gratidão que pode ser um broto da vida espiritual.

Época – Quais são os sintomas da falta de contato com a natureza?

Becker – Não existem sintomas específicos que possam ser atribuídos a isso. Os sintomas estão ligados ao estilo de vida que apresentamos para nossas crianças. É uma vida nociva, baseada numa falta de convivência com os pais. Tem comida industrializada em excesso, com muito sal e aditivos. Vemos institucionalização de crianças em creches, confinadas em lugares fechados, sem contato com ar livre, sem poder extravasar sua energia. Para compensar, apresentamos um excesso de entretenimento eletrônico. 

Essas crianças não recebem limites dos pais, por falta de convivência com eles. São usadas para lançar modas. Têm agendas muito ocupadas, ficam estressadas demais. É uma agenda lotada e inútil. Isso sem falar na infância pobre, sem escolas ou alimentação adequada. Você vê a obesidade predominante. São crianças agitadas, que não assimilam nem aprendem direito. Ficam desafiadoras e opositoras. O pior de tudo é que, em vez de reavaliar tudo, preferimos insistir no mesmo tipo de educação e medicalizando as crianças. Damos remédios pesados, em geral para crianças saudáveis, que não precisam dessas substâncias, mas estão submetidas ao massacre da infância.

Época – Como você identifica a falta de natureza no consultório?

Becker – O contato com a natureza faz parte da minha anamnese desde o recém-nascido. Já pergunto onde a família mora, quais são os recursos naturais próximos. Felizmente, aqui no Rio, temos uma abundância de recursos naturais. Mas, infelizmente, muitos pais levam os filhos para o shopping em vez de levar para os parques, que têm até cachoeira urbana. Então vejo isso com os pais. E faço uma pregação sistemática da importância de levar a criança para o ar livre desde bebê. Mesmo bebês podem ir a um jardim botânico, um bosque, uma praça. 

Época – Como você receita natureza para os pais do paciente? Como explica isso para eles?

Becker – Uma vez que eu entenda qual é o estilo e os recursos da família, prescrevo contato diário com a natureza. Inclusive escrevo isso em minhas receitas. Se possível, em áreas naturais mesmo, como bosques ou parques nacionais.

Época – Quais são as razões para os pais não darem contato com a natureza para seus filhos?

Becker – Basicamente, isso faz parte da proposição social. Isso não é responsabilidade só da família. A gente precisa entender o contexto. Há uma cultura muito ligada ao consumo, shopping, eletrônicos, entretenimento caseiro, e pouco voltada para o usufruto das atividades naturais. A gente precisa convencer as pessoas disso. Não é culpa da família, faz parte da sociedade.

Época – Como os pais reagem? Eles aceitam? Contestam? Justificam-se? Acham a proposta muito absurda?

Becker – Não, ao contrário, reagem com simpatia. Eles reconhecem imediatamente a importância do que estou falando. Nem preciso falar muito de evidências científicas - até falo um pouco, mas faz sentido imediato para as pessoas. Elas meio que despertam de uma hipnose da vida contemporânea enterrada entre quatro paredes. Há uma ideia carioca de que se o tempo está nublado ou bateu um ventinho, não pode sair de casa com a criança. Eu desmitifico isso. Imagine! Se fosse assim, a população do Canadá ou da Islândia estava extinta - e esses são países onde as crianças gozam de ótima saúde. Tempo nublado não é problema. No clima tropical, pode ser até melhor para aproveitar a natureza.

Época – Você como pediatra consegue mudar a cultura da família em relação a esse assunto?

Becker – O pediatra pode contribuir com a mudança da cultura da família, mas não é suficiente. Pense em como mudou a cultura do cigarro: há 20 anos, ele era visto com glamour. Hoje, o fumante é visto como um tolo que não consegue mudar de hábito. Para isso, contribuiu uma campanha cultural ampla, incluindo até novelas. O resgate da natureza depende da prescrição pediátrica, mas também das escolas, da mídia e de incentivos do governo para a manutenção de praças, oferta de transportes e promoção das áreas verdes urbanas.

Época – Você já falou sobre esse assunto com outros pediatras? Como é a posição deles?

Becker – O Comitê de Pediatria Ambulatorial da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj) tem feito uma campanha importante. Fizemos um fórum sobre esse assunto no Congresso de Pediatria do Rio de Janeiro em outubro de 2016. A ideia tem sido bem aceita. Estamos trabalhando para disseminar isso. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também está engajada na questão.

Época – Que tipo de natureza você recomenda? Qualquer área verde na cidade? Um contato com o mar? Passeio em áreas selvagens?

Becker – Qualquer contato vale. Uma praça com um gramado, um lago, uma lama, um pintinho, um gato, um cachorrinho*, o canteiro de plantas da calçada, fazer um buraco na terra. É claro que se a gente consegue levar a criança num lugar mais exuberante, como uma praia, um bosque, é ótimo. Mas qualquer natureza já ajuda. Uma horta oferece a chance de ver a planta crescendo, ver o alimento nascendo. É um deslumbramento para a criança.

Época – E os riscos das atividades ao ar livre em espaços naturais? Como lidar com eles?

Becker – Os riscos são moderados. Brincar num espaço fechado em casa também pode oferecer riscos. A criança pode bater na quina de um móvel, quebrar um copo de vidro. No espaço natural, a criança pode ralar o joelho. Quanto menor a criança, mais próxima deve ser a supervisão. Mas a gente deve dar liberdade à criança para ser autônoma. Ela precisa ser capaz de avaliar o risco. Precisa aprender a decidir se vai subir num tronco, se vai pular de uma pedra. É claro que deve ter supervisão. Mas pequenos riscos não fazem tão mal. Isso é uma nova experiência internacional. Há playgrounds onde as crianças podem experimentar riscos controlados de queda ou mesmo brincar com fogo. Isso é importante para elas aprenderem a lidar com os perigos e no futuro poderem tomar decisões importantes para suas vidas.

Época – Uma coisa é recomendar contato com a natureza para famílias com capacidade financeira para viajar aos arredores do Rio ou programar férias num lugar bonito. Outra coisa seria recomendar isso para famílias pobres. Existe uma barreira econômica para o contato com a natureza?

Becker – Claro. É por isso que a gente fala em justiça ambiental. Sim, famílias pobres têm mais dificuldade. A gente precisa oferecer políticas públicas que facilitem o contato delas com a natureza. Isso significa transporte coletivo, atividades com sociabilidade, criação de espaços naturais na periferia, segurança e iluminação, escolas públicas com passeios para áreas naturais. Tudo isso é importante para essas famílias terem acesso à natureza que é tão benéfica para elas. Isso é fundamental para promover esse resgate que não é essencial só para as pessoas, mas para a própria preservação ambiental.



*NOTA DA NATUREZA EM FORMA:

Lembramos aqui que o convívio com os animais é extremamente benéfico para crianças, podendo ensinar até responsabilidade para elas, ao cuidar de outro ser vivo. Mas sempre deve haver supervisão de um adulto também, que vai se certificar de que o animal esteja sendo bem cuidado e alimentado. O básico da lição, tanto para a criança quanto para o adulto, é que o animal é um ser vivo e não um experimento. Leia aqui uma matéria sobre isso.

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