Para além da Carne Fraca: exploração animal e escravidão humana na indústria da carne


Por Vanice Cestari*

A pecuária é uma das principais atividades econômicas do País, sendo o Brasil o segundo maior produtor mundial de carne bovina e o maior exportador do mundo, conforme dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Atualmente, o Brasil produz 10 milhões de toneladas de carne bovina, sendo 20,8% negociados para exportação em dezenas de países, registrando na última década um crescimento de 135% no valor de suas exportações e atingindo em 2015 a cifra de US$ 5,4 bilhões, representando expressiva fatia do PIB brasileiro [1].

A agropecuária representa mais da metade da atividade econômica em 1.135 dos 5.570 municípios brasileiros (20,4%), podendo-se afirmar que o setor continua gerando bastante renda para o País e muitos postos de trabalho, tendo a pecuária batido três recordes em 2016 na produção de ovos e abate de frangos e suínos [2].

Como se sabe, essa força do agronegócio tem grande reflexo e influência no cenário político do País, possuindo grande representatividade no Congresso Nacional por meio da famigerada bancada ruralista.

Tais fatos dão uma certa medida da defesa ferrenha ou obstinada acerca do consumo da carne pelo Governo e pelos mais variados setores empresariais e atores políticos, ainda com o escândalo que veio à tona com a divulgação da Operação Carne Fraca deflagrada pela Polícia Federal e exatamente por conta dele.

Setores da esquerda, os mesmos que são contrários às reformas previdenciária e trabalhista, se colocaram contra a publicização da megaoperação, entendendo que o estardalhaço gerado não teve outro fim se não o prejuízo da economia interna e externa e ainda a existência de escusos interesses político-nacionais por trás dessa investigação.

Já outros pensadores, também opositores às reformas em curso e críticos a esse posicionamento que apenas joga luz na defesa do nacionalismo e do capital, salientaram a importância de trazer ao debate as condições degradantes em que são submetidos os trabalhadores nos frigoríficos, o trabalho escravo em fazendas de gado, os crimes ambientais perpetrados, a grilagem de terras, violência e mortes humanas sofridas por operários e populações indígenas.

Em que pese a divergência de opiniões, ficou de fora dessa questão aspecto relevante como os graves riscos à saúde do consumidor que comprou carnes apodrecidas e impróprias ao consumo e, sobretudo, a questão de fundo da brutal exploração e violação dos direitos dos animais por meio do consumo desnecessário de sua carne (comercialmente chamada de proteína animal), que é o verdadeiro pilar que sustenta toda essa cadeia exploratória de trabalhadores do campo nos frigoríficos e na pecuária.

Mais de seis bilhões de animais são mortos anualmente pela pecuária, seres vivos destroçados e assassinados estupidamente, pois não precisamos de sua carne, extermínio esse que está na base da pirâmide de um sistema que (re)cria e desenvolve outros ciclos de violências e de mortes, humanas e ambientais [3].

É pelo consumo da carne que se escraviza e se explora animais e pessoas humanas (trabalhadores da pecuária), é pelo consumo da carne que se mata populações indígenas, é pelo consumo da carne que se perpetua a grilagem de terras públicas, é pelo consumo da carne que se desmata exponencialmente a Floresta Amazônica para sua conversão em pasto, é pelo consumo da carne que se sustenta o empobrecimento e a fome das comunidades locais que permanecem em situação de pobreza e precariedade. É pela defesa irrefletida e apego ao consumo da carne que se (re)produz uma economia desumana, brutalizada, mortífera e antiética que dizima vidas animais e humanas de modo conjunto, no caminho da destruição da biodiversidade e da própria subsistência da vida no planeta [4].

Urge a tomada de consciência de setores do movimento progressista de como a causa animal (especialmente a criação de animais para abate), defendida precipuamente pelo movimento vegano, não pode mais ser deixada de escanteio como pauta irrelevante se estivermos em busca de uma economia justa e ética que não se sustente por meio da exploração de vidas oprimidas e que possa garantir a perpetuação dos direitos humanos em longo prazo nesta Terra. 

Em síntese, é momento de estabelecer conexões e notar que a contínua violação aos direitos dos animais, mutilados, processados e transformados em embutidos e pedaços de carne, de modo não apenas cruel, mas absolutamente desnecessário à saúde humana, é a questão central que afeta, de modo direto, parte expressiva da violência e miserabilidade humanas.

Ninguém ignora que, paralela à Operação Carne Fraca que trouxe à tona as novas fraudes da indústria da carne, a questão nacional que está posta na atualidade são as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo Governo, naturalmente estando a esquerda na oposição a tais reformas, que estão em evidente retrocesso.

Contudo falta esse ajuste elementar, a criação de um novo olhar entre as causas humanas, animais e ambientais, como a questão previdenciária e trabalhista, aparentemente distintas e desconexas do escândalo da carne adulterada, porém intrinsecamente atadas ao ato (individual) de consumir produtos de origem animal.

Somos contrários e não queremos a reforma da Previdência e das leis trabalhistas nos moldes propostos, mas não estamos dispostos a romper com a demanda pela carne dos animais, pelo sangue e suor dos trabalhadores escravizados pela indústria pecuária. A revolução só será possível com a mudança individual, para depois mudar o todo. É necessário haver uma compreensão sistêmica sobre a interseção desses temas.

E é preciso dizer o óbvio: a exploração humana nos frigoríficos e a violência no campo contra as populações locais existem porque há demanda. Consumidores de carne e produtos de origem animal, sejam de esquerda, sejam de direita, é quem produz essa demanda.

Até quando fecharemos nossos olhos para o que colocamos no nosso prato diário e seguiremos fortalecendo os reis e donos do País?

Muito se questionou sobre a existência ou não de déficit previdenciário, sendo um consenso da esquerda de que não é o trabalhador ou aposentado quem deve arcar com o prejuízo. Entretanto a JBS é a segunda maior empresa da lista de devedores da Previdência, devendo R$ 1,8 bilhão que, somada aos demais inadimplentes, devem quase três vezes o alegado déficit do setor [4].

Portanto a indústria pecuária (onde se incluem os frigoríficos) tem papel fundamental nesse cenário, setor econômico que jamais deveria existir numa sociedade justa, ética e igualitária, onde bilhões de animais são descartados como se nada fossem para satisfazer a ganância de poucos empresários que se utilizam de seu império para o exercício de influências políticas, utilizando o consumidor da carne e derivados animais como massa de manobra, onde a saúde e vidas humanas não têm valor (assim como não tem valor a vida dos animais de abate para as pessoas que se alimentam deles irrefletidamente, por paladar ou manutenção de questão cultural alimentar).

A chamada “bancada do boi” é a responsável direta pelo retrocesso na legislação dos direitos sociais, trabalhistas e de preservação ambiental. As principais e mais expressivas violações de direitos humanos no âmbito do trabalho estão no meio rural, sendo que nos frigoríficos, grande parte dos trabalhadores ingressam, cedo ou tarde, na lista de brasileiros obrigados a se afastarem do trabalho, temporária ou permanentemente, dependentes da assistência previdenciária.

O documentário Carne Osso, dirigido por Caio Cavechini e produzido no início desta década, nos alerta que a pecuária é uma das grandes responsáveis pela maior parte das ações trabalhistas nas varas das regiões onde atuam – empregando mais de 750 mil trabalhadores em toda a cadeia produtiva (sendo 250 mil no abate de bovinos e 500 mil no abate de aves e suínos).

Isso nos dá a medida do drama vivido pelos trabalhadores e do quão esse setor da economia é teratológico e mortífero, cujo cenário certamente se agravou ao longo dos últimos anos com o aumento da produção e conquista de novos mercados no cenário internacional.

Acidentes e doenças do trabalho como perdas de membros; cortes profundos; tendinites; condilites; lesões nos cotovelos, punhos, pescoço, ombros; excesso de peso; tempo excessivo na mesma posição do corpo; temperaturas excessivamente frias; sofrimentos psíquicos; depressão; transtornos mentais são exemplos do que o trabalhador está sujeito na indústria que só promove dor, sofrimento, doença e morte.

Especialistas mostraram que as queimaduras dos trabalhadores no abate de bovinos é seis vezes maior quando comparado com os demais trabalhadores, aumentando em 596% o excesso de risco de queimaduras. Já no abate de aves, suínos e pequenos animais, as lesões sofridas no punho têm excesso de risco no percentual de 743% quando comparado com os demais.

Tecer críticas às reformas previdenciária e trabalhista ou até mesmo à Operação Carne Fraca sem estabelecer o vínculo dessas questões com a realidade de fundo que é o uso de animais para alimentação humana, quando já se comprovou a desnecessidade do ponto de vista da saúde humana e a existência de alternativas, é ignorar a essência dessa exploração e reafirmá-la.

A eliminação do sofrimento dos trabalhadores na pecuária e das comunidades locais só será possível com a abolição daquilo que a origina, estando a libertação humana ligada à libertação animal.

Não se pode mais fugir da realidade posta à nossa frente: a economia suja quer expandir e vai, com a aprovação de mais retrocessos em prejuízo dos direitos sociais. Mais do que nunca, é preciso unir forças e tracionar no sentido contrário: é preciso a tomada de consciência e coerência no seio do discurso progressista, é hora de abolir o consumo da carne animal, de usarmos a inteligência para não mais alimentar a indústria sanguessuga que explora e descarta vidas animais e humanas, de respeitar a teia da vida e a nossa moradia comum planetária.

É hora de agir em benefício dos demais seres viventes. Como canta Chico César, eu me alegraria se afinal morresse esse sistema que nos causa tanto trauma.


*Vanice Cestari é advogada e ativista em direitos humanos

Referências

[1] MAPA e Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes

[2] IBGE 2014 e 3º trimestre de 2016

[3] IBGE / 2º trimestre de 2016 <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/producaoagropecuaria/abate-leite-couro-ovos_201602_1.shtm>

[4] A pecuária ocupa de 75% a 81% do total desmatado da Amazônia entre 1990 e 2005 (Fonte: IMAZON)

[5] EBC <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-02/devedores-da-previdencia-devem-quase-tres-vezes-o-deficit-do-setor>

Fonte: Justificando 

Foto: Reprodução


NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:

1. Leia também: Muito além da Carne Fraca

2. Animais não são alimento, nenhum deles. Eles não são comida nem escravos dos humanos. Sentem como todos nós e por isso merecem a vida e a liberdade. A alimentação vegetariana estrita, sem carne de qualquer tipo ou derivados (laticínios, ovos, mel), já está provada como sendo a mais saudável para os humanos. Quem opta pelo veganismo (que engloba não somente a dieta vegetariana estrita, como também o não uso de roupas e acessórios de couro, lã, pele e seda, assim como o boicote a "atrações" que exploram os animais, como zoológicos, circos e aquários, e a empresas que fazem testes em animais) está fazendo um bem pelos animais e para sua própria saúde e vida. E não é difícil nem caro. Quer uma ajuda para começar a parar de comer carne? O primeiro passo é a informação. Aprenda com quem já vive esse estilo de vida: pergunte, pesquise. Use as redes sociais para expandir seu conhecimento sobre vários assuntos, inclusive esse, que é vital para você e um imensurável número de vidas inocentes. Há diversos grupos sobre o tema no Facebook. Listamos abaixo alguns deles:

VegAjuda - Veganismo disponibiliza um tópico fixo com uma lista de produtos (não só para alimentação) livres de crueldade animal e oferece sempre diversas dicas para iniciantes e "veteranos";

Veganismo é um dos maiores grupos sobre o tema no Facebook, com quase 50 mil membros sempre compartilhando experiências e tirando dúvidas;

Veganismo Popular e Veganos Pobres Brasil desmitificam a ideia de que veganismo é caro. É perfeitamente viável seguir uma alimentação diária sem crueldade animal e sem maltratar o bolso;

Musculação Vegana é voltado para os praticantes de atividades físicas. Nele, você pode ver como é preconceituosa e errada a ideia que algumas pessoas tentam propagar, de que vegetarianos estritos são fracos fisicamente (muito pelo contrário, são mais fortes e saudáveis). O grupo oferece diversas dicas de alimentação e suplementação vegana.

Existem diversos sites e blogues com deliciosas receitas veganas (além dos tradicionais livros de receitas), simples e baratas de fazer. Clique aqui para conhecer uma lista deles!

Já a Revista dos Vegetarianos é uma publicação mensal (impressa e on-line) com excelente conteúdo que vai bem além de receitas, focando a saúde como um todo. 

Mapa Vegano lista diversos estabelecimentos em todo o Brasil, abrangendo produtos e serviços de alimentos e bebidas, higiene e beleza, roupas e acessórios, ONGs e outros. 

Informe-se sempre! Aqui mesmo em nosso blogue, publicamos diariamente matérias sobre veganismo x indústria da carne (e do leite, ovos etc.). Leia também em outras fontes, converse com outros veganos e vegetarianos (mesmo que você não conheça pessoalmente, como nos grupos indicados acima) e veja de que lado é o certo ficar. Mas já saiba desde o começo que abraçar o veganismo é uma mudança e tanto, que fará um imenso bem para você, para os animais e para o planeta.

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