Em um mundo pautado pelo abuso e morte de bilhões de animais, a psicóloga australiana Clare Mann identificou um fenômeno que denominou de “vistopia”. Segundo ela, trata-se de uma crise existencial experimentada por veganos que surge a partir da conscientização de que vivemos em um mundo com a onipresença da exploração animal, em uma distopia moderna.
Clare escreveu um livro sobre o assunto chamado Vistopia: A Angústia de Ser Vegano em um Mundo não Vegano. Ela também oferece dicas de comunicação para que veganos possam conscientizar outras pessoas em um aplicativo chamado Vegan Voices (um vídeo gratuito com essas dicas pode ser visto aqui, em inglês) e é editora-chefe da revista Ethical Futures. Nesta entrevista exclusiva concedida à Agência de Notícias de Direitos Animais - Anda, Clare explica como a psicologia pode ajudar os ativistas e aborda ferramentas estratégicas de comunicação. Confira.
Como e quando você começou a defender os animais?
Tornei-me consciente sobre a crueldade contra animais em matadouros há cerca de 40 anos, na década de 1980, quando li um livro de Bob Geldof (a autobiografia Is that it?). Foi tão terrível que parei de comer carne vermelha, mas gostaria de ter feito mais perguntas. Ao longo dos anos, fiz avanços graduais para o veganismo. Há 10 anos, soube sobre os porcos criados pela pecuária na Austrália. Tornei-me vegana e ativista ao mesmo tempo, me juntando a vários grupos, e comecei a falar em nome deles.
De que forma a psicologia pode ser aplicada ao ativismo?
A psicologia fala muito sobre pessoas, e o ativismo pelos direitos animais se trata de convencer outras pessoas a mudar. Conhecer os diferentes estágios dos indivíduos, grupos e sociedade como um todo é muito importante. Assim, você é capaz de trabalhar com atitudes, emoções, trabalhando tanto a lógica quanto as conexões emocionais. E conhecer esses estágios e escolher uma informação para comunicar de maneira que as pessoas façam boas perguntas e digam: “Conte-me mais”. Trata-se de também entender um indivíduo e como as pessoas mudam, como as influenciamos. Como fazer com que elas ouçam, se comprometam para que vejam as imagens e vídeos terríveis de crueldade e não saiam correndo. Queremos que elas fiquem perturbadas e furiosas para que não sintam vontade de fazer parte disso. Se não compreendermos como a mudança ocorre ou a resistência que as pessoas têm – o mecanismo de defesa –, elas irão culpar as outras por lhes contar isso em vez de ficarem indignadas com o que ocorre atrás de portas fechadas. Em um nível social, é muito importante entender que as pessoas pertencem a grupos e compreender como esses grupos e as normas são formados e como as pessoas querem se encaixar.
É importante entender a pressão dos grupos, familiar ou social. No nível social, alguns modelos parecem nos ajudar a entender que as pessoas têm níveis de consciência diferentes. Algumas passam a vida olhando para além delas mesmas e não querem destruir o meio ambiente. Outras são muito individualistas e há diferentes modelos para tentar compreender isso, em como podemos nos comunicar e ser ativistas. A neurociência mostra que as mudanças no fluxo sanguíneo e na atividade elétrica cerebral deixam as pessoas calmas e relaxadas ao invés de agitadas e bravas. Nós, ativistas, estamos em um estado agitado e de indignação e, quando tentamos falar sobre isso e culpamos ou envergonhamos as pessoas, elas bloqueiam o fluxo sanguíneo no cérebro. Elas começam a atacar a outra pessoa, mas se você apresentar o assunto de outra forma, elas serão capazes de discuti-lo.
Quais os principais desafios desse trabalho?
Um dos principais desafios é a dor que os ativistas pelos direitos animais sofrem ao saber o tamanho do problema. Diante da resistência à mudança, um ativista fica enraivecido e frustrado, e começa a odiar as pessoas. Ele odeia o egoísmo das pessoas que não querem mudar. Outro fato desafiador é o grau elevado de emoções e princípios diferentes dos ativistas que geram discussões em nossos grupos. Esse é outro desafio, que não nos voltemos uns contra os outros, mas que fiquemos unidos.
Quais são os erros de comunicação mais comuns cometidos por ativistas?
Em primeiro lugar, o estado emocional deles e, em segundo, a raiva e o ressentimento que culpam as pessoas e seus hábitos de consumo. Um fato que precisamos entender é que se ativistas culpam pessoas que não sabem sobre isso, eles perdem a oportunidade de fazer as pessoas se importarem com isso. Outro erro comum é contar para as pessoas em vez de engajá-las com eles. É preciso compreender o que uma pessoa sabe, seu nível de entendimento e de mudança, em vez de falar para as pessoas que elas fazem parte disso de um modo muito confrontante, sendo que elas nem sabiam sobre isso - é muito importante ser colaborativo e engajar as pessoas, saber o lugar onde elas estão, lhes fazer perguntas em vez de culpá-las. Isso não apenas faz com que as pessoas fiquem na defensiva. A neurociência nos diz que, quando as pessoas sentem que não estão sendo julgadas, elas tendem a fazer questionamentos. No ativismo feito nas ruas, também acho muito importante dizer “isso é o que não sabemos” em vez de “isso é o que você não sabe”.
Você poderia dar alguns exemplos de estratégias de comunicação eficazes que os veganos podem utilizar para conscientizar outras pessoas?
É fundamental saber técnicas para momentos muito emocionais e com opiniões muito diferentes. Escute o que as pessoas têm a dizer, faça perguntas como “o que você quer dizer?”, “você pode falar mais sobre isso?”. Fale “o que você parece estar dizendo é..”, e então coloque isso em suas próprias palavras para que ela possa entender o que iremos relatar. Pergunte para as pessoas o que elas acham que veganismo é. Muitas não sabem, fale que é um estilo de vida sem exploração animal. Um dos erros comuns é que ativistas não sabem o contexto dessas pessoas, eles não lhes fazem perguntas. Há também a palavra 'nós'; frequentemente as pessoas dizem “você não sabe que animais vivos estão sofrendo”, e a pessoa fica na defensiva. É melhor quando dizemos: “Temos sido enganados, e quando eu descobri a realidade, fiquei horrorizado. Posso lhe contar a realidade?”.
Outro fator são as brechas, que podem ser a justiça social, a saúde, o meio ambiente, normas sociais. Escute atentamente e então comece a fazer perguntas e lhes contar sobre o abuso e extinção dos animais, os cosméticos, os plásticos nos oceanos e a indústria de laticínios, que é terrível. Discuta sobre a economia, oportunidades de trabalho e as pessoas que passam fome no mundo porque animais são alimentados com o que poderíamos dar para elas. Essas brechas são muito poderosas. Quando perguntamos para as pessoas se podemos dizer a elas o que queremos, duas coisas acontecem: elas sentem que têm a escolha de dizer não, mas também sentem que não estão ouvindo um discurso.
Outro fator são as brechas, que podem ser a justiça social, a saúde, o meio ambiente, normas sociais. Escute atentamente e então comece a fazer perguntas e lhes contar sobre o abuso e extinção dos animais, os cosméticos, os plásticos nos oceanos e a indústria de laticínios, que é terrível. Discuta sobre a economia, oportunidades de trabalho e as pessoas que passam fome no mundo porque animais são alimentados com o que poderíamos dar para elas. Essas brechas são muito poderosas. Quando perguntamos para as pessoas se podemos dizer a elas o que queremos, duas coisas acontecem: elas sentem que têm a escolha de dizer não, mas também sentem que não estão ouvindo um discurso.
Essa parceria não envolve a culpabilização. Sempre penso que quando as pessoas dizem “não quero ver as imagens” é porque elas sentem uma emoção tão intensa que não podem estar nesse estado de vulnerabilidade. Pergunte a elas: “O que você acha que terá de tão terrível no que vou mostrar?”. Há pessoas que trabalharam em matadouros e diziam que são só animais e saem da indústria e se tornam ativistas. Nós queremos que elas sintam a emoção e mudem seus comportamentos, e fazemos isso ao nos tornarmos parceiros delas, envolvendo-as. Quando lhes fazemos perguntas, podemos posicionar nossa resposta.
Quando eu fazia ativismo nas ruas, uma pessoa disse: “Você devia se preocupar mais com crianças do que com animais”. Eu respondi: “O que faz você dizer que devíamos nos preocupar mais com pessoas do que com animais?”. Eu queria saber se ela era religiosa, envolvida com direitos humanos, alguém que não percebia a conexão entre o abuso de animais e a fome no mundo, problemas ambientais etc. Eu falei: “É muito importante defendermos todos os seres vulneráveis. Defender os animais e expor o que está acontecendo atrás de portas fechadas é uma das melhores coisas que podemos fazer pela saúde, consciência e pelos químicos e farmacêuticos que acabam nas dietas das pessoas e as deixam doentes. Esses animais são inocentes, não têm voz e defendê-los é o melhor que posso fazer pelas pessoas”.
Seu novo livro aborda um conceito chamado vistopia. Você poderia explicar o que é e como identificou isso?
Sou psicóloga há mais de 30 anos e tenho visto um número crescente de pessoas se tornarem veganas. Milhares falam sobre a dor que eu sinto. Eu sabia que era o momento de encontrar uma palavra que sintetizasse a complexidade de ser vegano e um ativista pelos direitos animais e o trauma. Decidi criar uma palavra para explicar para as pessoas a imensidão do veganismo. Vistopia é a conscientização e a angústia emocional de descobrir a sistematização da crueldade em nossa sociedade. Essa angústia se intensifica quando contamos às pessoas e há uma colisão com o que eu chamo de mundo “vistópico”. Sabemos que um mundo utópico é um local de felicidade e liberdade, já uma distopia é um mundo sombrio, cruel, com totalitarismo.
Acredito que quando os veganos se tornam cientes da crueldade deste mundo e que é desconhecida pela maioria das pessoas, ocorre uma crise existencial. As pessoas pensam “tudo o que eu pensava ser verdade não é”, e elas questionam a integridade dos outros, elas veem as corporações, as mentiras dos governos, a corrupção, os farmacêuticos… A pessoa que sofre de vistopia percebe que não se trata apenas de saber sobre a crueldade, mas de lidar com um mundo vistópico, e essa é a angústia dos veganos. Eu queria ajudar os veganos, e meu novo livro fala sobre a extensão disso e será uma ferramenta poderosa que as pessoas podem dar às outras para explicar que isso não se trata somente dos animais, é um problema muito maior derivado disso.
Como os ativistas podem se manter positivos e transformar a dor de saber que inúmeros animais sofrem em todo o mundo em ação para defendê-los?
É muito desafiador porque sofremos muito com o que sabemos. Em primeiro lugar, permanecer positivo e ter um autocuidado: descanse, tenha uma boa alimentação, beba água, faça exercícios, faça uma pausa, veja filmes divertidos e saia com amigos. Você precisa fazer uma pausa. Durma o suficiente e procure ajuda profissional. O transtorno pós-traumático é muito poderoso na vida das pessoas e, quanto mais você se torna um comunicador, você precisa ser gentil consigo mesmo, nem sempre as pessoas mudam imediatamente. Temos que vender uma solução para um problema que as pessoas não sabem que têm e precisamos aprender a nos cuidar para difundir o veganismo. É preciso também entender que não precisamos mudar todos, o problema é muito grande.
A razão pela qual as pessoas se alimentam dessa maneira e vão a zoológicos é porque é uma tradição e um hábito, e elas seguem o que lhes disseram para fazer, elas não questionam. Quando criamos uma nova forma, as pessoas gravitam em torno dela. Recentemente, a ONG Animals Australia realizou uma pesquisa para saber como as pessoas mudam e percebeu que, quando a mudança cresce, ela cresce exponencialmente, o que temos visto nos últimos dois anos. Mahatma Gandhi disse: “Primeiro, eles te ignoram, depois riem de você, depois brigam e, então, você vence”. Estamos observando o confronto, e eles só brigam com você porque sabem que você está forçando-os a mudar. Fique com outros ativistas, afaste-se da dor, celebre, porque você precisa continuar.
Fonte: Agência de Notícias de Direitos Animais - Anda
Foto: Arquivo pessoal
Fonte: Agência de Notícias de Direitos Animais - Anda
Foto: Arquivo pessoal
Nenhum comentário:
Postar um comentário