Hilary Jones, diretora de ética da Lush, fala sobre a relação entre consumo, veganismo e feminismo

Hilary Jones, 55 anos, diretora de ética da Lush: "O consumidor, quando 
vê o produto na prateleira, não sabe o que aconteceu até ali" (Foto: Divulgação)


O único caminho é a ética. A frase poderia ser um mantra de algum monge budista ou até título de um livro de autoajuda. Mas ela é o que guia os passos da britânica Hilary Jones, 55 anos, tanto como feminista, vegana e ativista pelos direitos dos animais quanto como diretora ética da Lush Cosmetics, marca inglesa que está há mais de 20 anos no mercado e voltou para o Brasil há cerca de três anos.

"A verdadeira ética não é 'uma coisa'. É uma jornada, uma constante busca para tentar viver a melhor vida que você consegue - para você, para os outros e para o planeta", afirmou Hilary em entrevista ao HuffPost Brasil, durante o Lush Summit, festival de inovação e ativismo promovido pela marca, em Londres.

Não à toa, Hilary tem o cargo de diretora de ética. Em tempos em que a chamada "onda verde" e discussões sobre o combate a testes em animais invadiu o mercado de cosméticos, ela está na vanguarda do ativismo ao conduzir os caminhos dos produtos que são feitos com mão de obra artesanal, matéria-prima orgânica, que chegam frescos ao consumidor final e inspiram outras empresas pelo mundo a fazer o mesmo.

"Muitas empresas já provaram que é possível não fazer testes em animais. E eu acho que, como todos os sistemas, esse é mais um que precisa mudar - e é difícil fazer isso. Acho que, como todos os sistemas, pessoas que cresceram dentro dele o protegem porque é o que elas conhecem", afirma.

Desde 1995, a Lush, criada na Inglaterra, pensa em inovar e promover o consumo consciente: 100% dos produtos são vegetarianos, mais de 85% são veganos*, cerca de 46% não contêm embalagem feita de plástico e grande parte do material usado por eles é reciclável. Buscando um caminho ético, a marca usa apenas materiais sintéticos que são seguros para o meio ambiente, defende causas ligadas a direitos humanos e combate testes em animais. Seus produtos estão em mais de 49 países.

Apenas nove de 63 marcas de cosméticos pelo mundo não testam seus produtos em animais, segundo um levantamento de dados da ONG Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais (PETA), uma das principais organizações de defesa dos direitos dos animais do mundo.

Em 2012, a Lush desenvolveu uma campanha contra produtos testados em animais que gerou discussão e conseguiu levar  à frente um abaixo-assinado contra marcas que fazem testes em animais. Uma atriz de 24 anos se submeteu, voluntariamente, a diversas práticas comuns em laboratórios de testes de produtos em animais.

Jacqueline Traide permaneceu 10 horas na vitrine de uma das lojas da marca, em Regent Street, uma das ruas mais movimentadas de Londres. Ela foi forçada a comer, recebeu injeções, foi cobaia de testes de líquidos e cremes, teve seu cabelo raspado e sua boca esticada por um aparelho de metal.

Veja o vídeo abaixo, em inglês.




"Nós somos deuses como consumidores. Porque se escolhermos com cuidado exatamente onde vamos colocar nosso dinheiro... Quando gastamos dinheiro com determinada empresa, damos permissão para que eles façam exatamente o que já estão fazendo com o mundo", afirma a diretora de ética da Lush.

Antes de trabalhar na empresa, Hilary Jones era uma ativista em tempo integral. No auge dos anos 1980 e do nascimento do punk rock inglês, ela se envolveu em lutas que foram desde o fim do apartheid na África do Sul até pelos direitos dos animais e feminismo.

Ela, que se considera uma "feminista produto dos anos 1970", conta que "é um mistério como se tornou uma ativista" e que a dificuldade de se encaixar em um mundo que parecia hostil e cruel a fez chegar onde está agora. Em entrevista ao HuffPost Brasil, Hilary falou sobre os anos de ativismo e como ele se reflete na ética de seu trabalho; e sobre a relação, muitas vezes controversa, entre veganismo e feminismo.

Leia a entrevista completa.


Como você se tornou uma ativista?

Isso é um mistério! Mas acho que fui uma daquelas crianças preocupadas demais com as coisas, sabe? Então meio que cresci assim. Hoje, tenho 55 anos, então cresci na década de 1960 e, quando eu era mais jovem, não conhecia nenhum vegetariano, nunca tinha ouvido falar em vegetarianismo. Mas sempre me importei muito com os animais, com o que estava acontecendo com outras pessoas, e eu começava a ficar incomodada e chateada quando via o noticiário e suas notícias devastadoras: crianças morrendo de fome, guerra... Tenho certeza de que nossas crianças atualmente são afetadas por essas informações também, mas esse incômodo que eu sentia foi algo que nunca foi embora.

Quando eu estava na escola e pensava sobre uma carreira, eu simplesmente não tinha nenhuma ambição, nenhum plano para a minha vida. Talvez uma falta de imaginação, quem sabe? Mas o que eu realmente sabia era que queria trabalhar com coisas que realmente importavam para mim. Então meio que fui tirada completamente de todo o sistema e me envolvi com muitas causas ao mesmo tempo na minha juventude. Em 1980, existiam muitos jovens na Grã-Bretanha protestando contra o apartheid na África do Sul, contra as indústrias que estavam investindo naquele país. Nós boicotávamos os bancos, e eu não tive uma conta bancária até meu segundo ano trabalhando na Lush - meu cheque era até então endereçado com o nome da minha mãe. Havia muito ativismo rolando naquele tempo, sem falar que foi o momento do auge do punk rock. Esses jovens estavam batendo de frente com o capitalismo e grandes empresas, e eu estava lá também. Eram os anos 1980, então, influenciada por tudo isso, desisti do que estava predeterminado para mim.

E quando você se envolveu mais ativamente com o veganismo e direitos dos animais?

Foi nesse momento. Eu me envolvi em campanhas a favor dos animais, contra clínicas de vivissecção. Além disso, me envolvi com questões ligadas ao direito às terras na Grã-Bretanha, e isso foi exatamente quando Margaret Thatcher entrou no poder. Naquele momento, alguns de nós sentimos que era possível lutar por um jeito novo de viver. E isso foi, de certa forma, minha vida até então.

E quais ações vocês planejavam?

Nós começamos a criar festivais de música ao ar livre, que duravam meses. Não tínhamos muito dinheiro, então os músicos vinham tocar de graça em prol das causas que defendíamos. Não havia ingressos, e eu me envolvi em organizar isso. Daí, o governo começou a nos perseguir, porque eles não queriam uma sociedade mais livre e que se importasse menos com dinheiro. Então eu me envolvi muito nisso. E, ao mesmo tempo, me envolvi mais ainda com questões ligadas aos direitos dos animais. Estávamos ocupando um espaço e tentando chamar a atenção da opinião pública para coisas que estavam acontecendo e sobre as quais ninguém tinha conhecimento. Naquela época, por exemplo, Thatcher anunciou que um grande investimento seria direcionado para a criação de estradas. E ela tinha um interesse bem claro com isso: agradar a grandes empresas. E ela fez isso em vez de investir em transporte público, dar mais acesso à população; pensar no todo, não em algo que é "individual", como um carro. O carro virou o rei. E nós protestamos muito contra isso, até que ela desistiu do programa.

Certamente uma vitória contra o governo, certo?

Sim, claro. Mas foi uma resistência difícil. Tivemos que nos dedicar muito a isso. E isso foi a minha vida até a Lush. E o governo pressionou ainda mais e mais, e eu tenho que dizer: eu estava todo aquele tempo recebendo benefícios financeiros do governo. Na época, era o equivalente a 25 libras (cerca de 130 reais) por semana que o governo pagava para pessoas desempregadas. Mas eles começaram a se perguntar "peraí, eu estou pagando para essas pessoas protestarem contra nós?", e então cortaram o benefício da maioria dos ativistas. E eu vivi durante muito tempo sem nenhum dinheiro, mas continuei protestando ativamente. Mas uma hora tive que encontrar um emprego. Afinal, não dá para esperar que o mundo te alimente para sempre, não é?

E como isso aconteceu, como você chegou até aqui?

Eu estava nos meus 30 anos e tinha tantas convicções, já tinha vivido tanto, já tinha visto como o mundo é cruel com animais e não queria contribuir para um mundo que reforçasse isso. Então olhei ao redor e pensei: "Para onde posso ir? Onde me encaixo na sociedade agora?". E fui muito sortuda em encontrar um trabalho na Lush. Eu já conhecia a companhia que veio antes da Lush, que era a Cosmetics To Go, também dos donos atuais da Lush, e me tornei cliente porque, desde aquela época, eles já não faziam testes em animais (e tudo na Grã-Bretanha era feito com testes em animais). Essas foram coisas que sempre importaram muito para mim. E fui ver se eles tinham uma vaga.

Eles tinham e você está aqui, agora.

Sim, estou aqui! Isso já faz quase 25 anos.


Hilary Jones na época em que trabalhava na fábrica da Lush, 
em Poole, na Inglaterra, há 20 anos (Foto: Divulgação)


Pensando em todas essas questões que falamos sobre ativismo e veganismo: como você enxerga a relação entre feminismo e veganismo?

São questões que não podem ser vistas de forma separada. Sei que algumas pessoas ficam muito incomodadas quando veganos defendem essa ideia. Mas o que as pessoas não entendem é que, se você é um vegano ético e chegou até aqui por causa dos animais... E existem várias maneiras de chegar até o veganismo, e isso é ótimo. Mas ao longo dos anos em que me tornei vegana, aprendi muito: primeiro, quando me tornei vegana, todo mundo achou que eu ia morrer. Naquela época, não existiam provas de que minha dieta seria saudável. Todo mundo achava que, cortando os grupos alimentares já conhecidos, seria impossível sustentar a vida humana. E eu fiz isso e encontrei um caminho. E nós, veganos, nos sentimos tão bem ao não consumir nada de origem animal, que seria injusto não assumir esse risco. E, com sorte, hoje nós conseguimos provar que esse risco não existe. E que, na verdade, é a carne que coloca as pessoas em risco, principalmente por causa da forma como é produzida.

Comecei a fazer isso pelos animais. Hoje, você pode fazer isso para cuidar da sua saúde ou por causa da saúde do planeta porque, obviamente, isso também é algo que aparece quando você tem uma dieta que é menos nociva ao meio ambiente. Existem muitas referências agora. Mas para aqueles que vêm até o veganismo por causa dos animais, é importante ressaltar que nós vemos os animais tão importantes quanto seres humanos. Que eles têm valor, têm vida, e não devem ser abusados e manipulados para o nosso consumo.

E então, quando você começa a tirar um bebê de sua mãe, para simplesmente roubar seu leite, isso parece terrível para nós, como tirar um bebê dos seios de uma mãe que o está amamentando. Porque é isso que você está fazendo. E isso causa muita controvérsia no movimento feminista. São fêmeas, é uma unidade familiar que é destruída pela cadeia alimentar. Todas as indústrias abusam de animais, mas a alimentar, especificamente, força esses animais para além do que eles podem aguentar.

Eles estão sendo inseminados artificialmente para reproduzir com rapidez e serem comercializados, estão sendo alimentados com comida artificial e, dessa forma, passam a viver bem menos do que deveriam, mesmo quando estão a serviço da indústria. E como todas nós, mulheres, sabemos: a forma como nos alimentamos tem um impacto em nosso corpo e mente. E esses animais não têm uma vida produtiva, e quando eles não servem mais, são mortos e seus bebês são tirados.

Se alguém já ouviu uma vaca chorar quando seu filhote é tirado de perto dela após o nascimento... Não tem uma forma de não se compadecer com isso. É a mesma coisa para todos os seres vivos. Uma mãe dá à luz seu filho, você tira essa criança dela à força, aquela mãe entrará em luto e aquela criança irá sofrer. E isso é uma questão feminista. Todas as mulheres deveriam se colocar à frente disso**.

O que significa ética para você?

Acho que ética é um processo. É uma estrada. Não é uma linha de "chegada", ela não se define apenas por uma coisa. Ela se constrói, não é algo fechado. Porque a partir do momento em que você acha que está sendo 100% ético, surge uma outra questão para você pensar sobre. E outra, e outra, e outras. Porque não é algo que você não olhou ou não se interessou, é algo que começou a acontecer e que você deve se preocupar e entender por que chegou até você. Então a verdadeira ética não é "uma coisa". É uma jornada, uma constante busca para tentar viver a melhor vida que você consegue - para você, para os outros e para o planeta. Isso é o que ética significa para mim.

Na sua visão, por que tantas empresas ainda testam desde os ingredientes até seus produtos em animais, em vez de usar métodos alternativos?

Muitas empresas já provaram que é possível não fazer testes em animais. E eu acho que, como todos os sistemas, esse é mais um que precisa mudar - e é difícil fazer isso. Acho que, como todos os sistemas, pessoas que cresceram dentro dele o protegem porque é o que elas conhecem. E então, se a ciência está usando animais por todo esse tempo, você tem cientistas que defendem isso porque simplesmente é o que eles conhecem. E alguém inventa uma coisa nova, e você tem que treiná-los para usar esse novo método, você tem que fazer com que eles gastem dinheiro com equipamentos para usar esse método... Tem uma série de coisas que precisam ser consideradas para que a real mudança aconteça. E esse é o motivo pelo qual eu criei o Lush Prize: nós premiamos pessoas que estão usando técnicas científicas para substituir os testes em animais em todo o processo de produção***. É uma questão difícil que, se mais pessoas olharem para ela, é possível provocar uma mudança.

Algumas empresas adotaram a política de não fazer testes em animais, mas depois voltaram atrás.

Pessoas que recuam? Eu não tenho palavras para elas.

E o que nós, como consumidores, podemos fazer para provocar uma mudança?

Nós somos deuses como consumidores. Porque se nós escolhermos com cuidado exatamente onde vamos colocar nosso dinheiro... O tempo todo que gastamos nosso dinheiro com determinada empresa, damos permissão para que eles façam exatamente o que já estão fazendo com o mundo (tanto para o bem quanto para o mal). É como votar por um governo. Nós damos nosso dinheiro a eles, e eles ganham confiança, permissão. E as empresas não nos contam, na maior parte do tempo, como os produtos chegam às prateleiras. Como eles negociam com as pessoas que cedem os ingredientes a eles, por exemplo?

Não é apenas sobre o produto.

Exatamente. O consumidor, quando vê o produto na prateleira, não sabe o que aconteceu até ali. Eles têm que comprar ingredientes de produtores. Eles pagam essas pessoas da forma correta? Eles checam se a colheita desses ingredientes está sendo responsável por mais destruição? Como é transportado? Como é processado? Como é testado? Tudo isso importa. E toda vez que você paga, você está dando permissão para toda essa cadeia de produção e para a forma como eles comandam essa produção. E é essencial para nós, como consumidores, pensar: "Eu quero comprar coisas, mas não quero que isso seja abusivo para pessoas, animais e para o meio ambiente". É com você. E com as empresas para repensarem suas atitudes. E, como consumidores, o ideal é insistir e comprar sempre de pessoas que você sabe que são transparentes com o modo de produção. E que você só continuará a fazer isso se eles mantiverem determinado processo. Se nós tivéssemos um número grande de pessoas fazendo isso, muita coisa mudaria.

"A verdadeira ética é uma jornada, uma constante busca para tentar viver a melhor vida 
que você consegue - para você, para os outros e para o planeta" (Foto: Divulgação)


A Lush ainda não é 100% vegana. Você acha possível a marca chegar a esse patamar algum dia?

Eu gostaria que sim, pois sou vegana. Sei que estamos fazendo muitas coisas no momento, estamos trabalhando arduamente para nos livrar de alguns ingredientes não veganos, como o mel****. Ele é um ingrediente mágico, com propriedades que nenhum de nós pode recriar. A mágica das abelhas é uma coisa extraordinária. Mas é a mágica das abelhas, não a nossa. Pertence a elas. Então, como vegana, não acho que nós devemos roubar a mágica delas. Mas é um ingrediente muito eficaz, e nossos alquimistas gostam de usar esse ingrediente e criar coisas novas a partir dele. Acho que poderíamos nos livrar de tudo isso, sim. Mas precisamos convencer alguns vegetarianos da empresa [Hilary se refere a Mark Constantine, fundador da Lush] a desistir de alguns ingredientes. Então é uma guerra constante. É uma guerra amigável, uma guerra de paz.

E então, qual o seu maior objetivo no momento, como ativista e diretora de ética na Lush?

Acho que meu maior objetivo é sempre o mesmo: continuar em frente, e continuar aperfeiçoando. Estamos tão longe do que é realmente bom. Ainda não nos colocamos perto do que é realmente certo fazer. Certamente não estamos perto disso. É uma grande estrada que precisamos caminhar. Não somos revolucionários. Não nos sentimos melhor do que ninguém. Só estamos tentando passar por cima de um sistema muito imperfeito e, de certa forma, fazer isso de um jeito com que possamos ir para casa e não sentir uma enorme culpa sobre como entregamos nosso produto para o mundo.

Fonte: HuffPost Brasil 


NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:

*1. Conheça aqui as diferenças entre vegetarianismo e veganismo.


***3. O Brasil foi um dos vencedores do Lush Prize em 2017. Leia: Pele impressa em 3D substitui animais em testes de cosméticos 

****4. A indústria do mel é muito cruel com as abelhas. Leia aqui matérias a respeito. 

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