Amílcar de Sousa: “A carne não é o alimento do homem”

Amílcar de Sousa fundou a Sociedade Vegetariana de Portugal em 1908 
(Foto: Reprodução)


Foi em 1908 que o médico Amílcar Augusto Queirós de Sousa, defensor do vegetarianismo, fundou na avenida Rodrigues de Freitas, na cidade do Porto, a Sociedade Vegetariana de Portugal. No ano seguinte, Sousa lançou a revista O Vegetariano, periódico mensal que circulou até 1918 e teve boa repercussão na Europa e no Brasil.

Especialista em dietética e nutrição, Sousa escreveu que da velha confusão de teorias médicas, da grande época obscura do empirismo, como um dogma da ciência de então, uma forma errônea e cheia de preconceito, como se fora um mandado religioso e por isso mesmo eivado de má-fé, surgiu com essa frase perturbante: o homem é onívoro. Como à boca se pode levar tudo que queira, daí resultou essa monstruosidade deturpante da humanidade. Tal reflexão consta na página 45 da quarta edição da revista O Vegetariano, publicada em 1912. À época, Sousa já realizava conferências e palestras em defesa do vegetarianismo.

No livro As Hortaliças na Medicina Natural, lançado em 1992, Alfons Balbach e Daniel Boarim narram que Amílcar de Sousa foi um grande apologista do regime frugívoro: não só ele, como toda a família, só se alimentava de frutas. “Em sua revista intitulada O Vegetariano, tem feito propaganda das mais inteligentes e proveitosas em favor desse regime, e o número de adeptos que conseguiu converter ao regime frugívoro orça por muitas centenas em tempo relativamente curto”, registraram.

Na obra O Livro Negro do Açúcar – Algumas Verdades sobre a Indústria da Doença, de 2006, Fernando Carvalho observa que Amílcar de Sousa, um médico do século 19, estava melhor informado do que seus colegas da atualidade. “Desde a forma dos dentes até a capacidade do estômago e dimensões do intestino, como dados anatômicos em referência à comparação da série animal de que o homem é primaz, tudo demonstra que o gênero humano não é onívoro. A dentadura é semelhante à dos símios antropoides que se alimentam de frutos; e se os obrigarmos a serem carnívoros, imediatamente estigmas de degenerescência se notam, doenças de pele, queda dos pelos, reumatismo e outras manifestações de artritismo”, argumenta Sousa no artigo O Homem É Frugívoro, de 1912.

Em setembro do mesmo ano, o médico publicou O Caldo de Carne. No artigo da revista O Vegetariano, ele afirma que a carne não é o alimento do homem. Se fosse, o ser humano deveria ter condições de matar os animais com mãos e garras, triturando os ossos ou lacerando os músculos ainda quentes com os dentes, assim como faz a hiena. “Desprovido de armas cortantes e do artifício da culinária, o homem não pode se utilizar da carne nem do peixe”, justifica*.

Periódico onde Amílcar de Sousa divulgava suas ideias e descobertas 
em relação ao vegetarianismo (Foto: Reprodução)


Segundo o médico português, para uma consciência límpida e um espírito moral, ver morrer um boi é um espetáculo canibalesco e incompatível com a humanidade. “Assistir ao assassinato de um cordeiro é, sem dúvida, barbaridade infame. Queremos acreditar que a maior parte da gente que bebe às colheres a sopa ou corta com a faca um pedaço de vaca, se visse morrer os animais, não se banquetearia com tão grande gáudio”, defendeu no artigo Caldo de Carne.

Um homem revolucionário, Amílcar de Sousa é considerado pela Associação Vegetariana Portuguesa (AVP) o maior impulsionador do vegetarianismo e do naturismo em Portugal. “Ele conseguiu mobilizar outros médicos e personalidades da burguesia para o estilo de vida natural e saudável”, reconhecem Gabriela Oliveira e Nuno Metello no artigo Vegetarianos Há mais de um Século, publicado no semanário português SOL em 2011.

Em 1923, Sousa publicou a novela naturista Redenção, que aborda a importância da proximidade do ser humano com a natureza. Na obra, ele defende uma consciência ética universal, em que os animais têm assegurado o direito de não serem mortos simplesmente para atender maus hábitos culturais e alimentares da humanidade.

“Mas por que é que essas ideias [do vegetarianismo] não as tem defendido a classe médica? É simples a resposta. É que não há pílulas de sol nem injeções de exercício, tampouco vacinas de ar… e é preciso viver dos doentes. O médico do futuro é só aquele que nada receitar. Ensinem os doentes a viverem conforme a natureza e os sãos a não se desviarem dela. O medicamento fez já suas provas. São negativas”, declarou na revista O Vegetariano em abril de 1912.

Segundo Amílcar de Sousa, o melhor que os pais podem deixar aos filhos é a saúde. Portanto, para que os filhos não tenham doenças, o ideal é ensiná-los a seguir um regime natural, valorizar a vida ao ar livre e praticar exercícios regulares. “A alimentação humana tem sido desvirtuada pelo preconceito. O leite não é alimento do homem, mas sim dos filhos das vacas, dos cabritos, dos jumentos etc., antes de terem dentes para comer as ervas dos montes e prados! […] A velha fábula de Prometeu, que roubou o fogo do céu para comer os cadáveres dos animais cozinhados, eis a base em que assenta toda a errônea conduta da humanidade”, enfatizou em publicação da revista O Vegetariano de 5 de julho de 1912.

O pioneiro do vegetarianismo português

Maria Feio: “Amílcar de Sousa dispõe de uma resistência hercúlea. 
Caminha dezenas de quilômetros a pé sem a menor fadiga” 
(Foto: Reprodução)


Amílcar Augusto Queirós de Sousa nasceu em Cheires, Alijó, em 1876. Graduou-se em medicina pela Universidade de Coimbra. Mais tarde, em Paris, estudou a relação entre a nutrição e as doenças. Considerado o pioneiro do vegetarianismo português, correspondeu-se com outras personalidades que advogavam em defesa do vegetarianismo, incluindo o famoso médico norte-americano John Harvey Kellogg, o naturalista alemão Ernst Haeckel e o médico francês Paul Carton. Pacifista, também criticou a Primeira Guerra Mundial. 

Ele era amigo do poeta brasileiro e também defensor do vegetarianismo Carlos Dias Fernandes, com quem se correspondia frequentemente. Adepto do pedestrianismo, o médico chegou a viajar de Lisboa a Sines a pé, percorrendo mais de 160 quilômetros. “Dispõe de uma resistência hercúlea. Caminha dezenas de quilômetros a pé sem a menor fadiga”, escreveu Maria Feio sobre o médico português. Além disso, ele gostava de caminhar descalço. Faleceu na cidade do Porto em 1940.

O pioneiro do vegetarianismo português considerava Pitágoras o maior filósofo da história da humanidade. Para ele, Jean-Jacques Rousseau, que defendia a importância do contato das crianças com a natureza, era o melhor educador. Amílcar de Sousa publicou as obras O Naturismo, A Saúde pelo Naturismo, A Cura da Prisão do Ventre, A Redenção, Arte de Viver, Banhos de Sol e O Naturismo em Vinte Lições.


Referências

O Vegetariano: Mensário Naturista Ilustrado – Volumes I a IV. Sociedade Vegetariana de Portugal (1912)

Boarim, Daniel S.F.; Balbach, Alfons. As Hortaliças na Medicina Natural (1992)

Oliveira, Gabriela; Metello, Nuno. Vegetarianos há mais de um século. Semanário SOL. Páginas 40 e 41 (30 de setembro de 2011). Disponível em http://www.avp.org.pt/notiacutecias/vegetarianos-h-mais-de-um-sculo

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopédia. Volume 29. Página 761




NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:

*1. Leia aqui sobre uma série de características do corpo humano que evidenciam que não fomos feitos para comer carne.

2. Em um mundo onde até hoje existe desconhecimento e preconceito em relação ao vegetarianismo (e até mesmo informações falsas divulgadas por estudos pagos pela indústria da carne), é muito importante o ativismo de médicos como Amílcar de Sousa, realmente comprometidos com a causa vegetariana e até mesmo adeptos da dieta sem animais. 

Recentemente, surgiu no Brasil o grupo Médicos Vegetarianos, que reúne profissionais de todo o País com o objetivo de divulgar informações embasadas em estudos científicos sérios e conscientizar a população sobre os benefícios da vida vegetariana. Saiba mais aqui.

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