Somos uns mais terráqueos do que outros?


Por Lucas Brandão*

Animais e seres humanos, que compartilham a natureza deste planeta, são terráqueos: criaturas munidas de sentimentos, seres sencientes. Porém somos todos terráqueos na mesma proporção? Seremos uns mais dependentes de outros? De que forma essa dependência, se existir, se expressa? A verdade é que, de forma crescente, vem sendo evidenciado e desmascarado o carnaval que chega às bancas e aos pratos, contando narrativas que não chegam aos calcanhares das tragédias gregas, ficcionadas e representadas. Estas, no entanto, são bem reais.

Esse choque com a verdade nos traz três fases distintas, conforme o documentário Terráqueos (Earthlings, 2005) assinala: a ridicularização, mal esta nos chega ao conhecimento; uma opressão veemente perante essa premissa; e, já naquilo que é o reconhecimento de sua veracidade, a aceitação. Tudo isso no encalce de um percurso de choque, de confronto com aquilo que está por trás do véu, que é visto em suas cores utilitárias e seus usos coloridos.

O filme começa com uma ressalva importante quanto à comercialização animal com fins domésticos, ou seja, a compra e venda de animais para acolher em casa. As populações descontroladas de animais de estimação sem lar e comida permanecem, e as políticas de esterilização não conseguem falar mais alto que o (legalizado) comércio dessas espécies. Para que se regule a quantidade de animais de rua, para além dos abandonados, que são acolhidos em espaços com condições paupérrimas, surge a solução de findar com suas vidas. Terminar com uma vida, seja ela de quem for, de que forma for, não nos consegue deixar indiferentes. Mesmo assim, há quem assista, de braços cruzados e levianamente, a práticas de extermínio (a palavra certa é essa) de uma série de animais, remontando a métodos outrora usados. Seres sencientes, com sentimentos. Tudo isso é um mero passo para uma realidade a ser desconstruída.

Os passos continuam a ser dados, agora naquilo que é nossa alimentação. A adjetivação começa a ser escassa nesse contato com o impacto sensorial, em que os conteúdos visuais geram um incômodo proporcional à selvageria normalmente associada ao animal irracional. No entanto, é em meio a animais racionais, onde todos nos integramos, que se conduzem os mais bárbaros mecanismos de captura, criação e (des)cuidado dos futuros componentes dos pratos de cada um de nós. Os matadouros são parte desse ambiente, onde se geram as mais horrorosas imersões nos seres sencientes que não nós. A isenção de culpas se propaga, mas não se prende com aquilo que é a decisão quanto à alimentação. Podendo ser uma das atitudes a serem empreendidas, importa que a consciência permaneça bem desperta para o que acontece nas indústrias (novamente o termo certo) dos laticínios, suína, bovina e do peixe diariamente consumidos.

O derramamento de sangue é real, não está lá com o simples propósito de chocar. Os métodos para acabar com a vida de espécies com sentimentos são reais e aplicados, de forma massiva e maciça. São as narrativas que não nos chegam à percepção palpável e plausível, e que se fixam a distância, nas conjecturas lançadas por uns pseudointelectuais, que fazem povoar seus estudos com seus instintos radicais e conspiradores. As imagens não conseguem deixar ninguém indiferente e sereno. As condições deterioradas levam a um ápice insólito: o canibalismo. As degolações, as agressões baratas e gratuitas, as eletrocussões, as castrações sem anestesia estão registradas e perpetuadas. Ninguém as apagará de cenários reais e brutais, que surgem e se sucedem em nosso mundo, e não no do marciano alheio. É neste, no nosso. É neste onde se deixam definhar golfinhos recentemente retirados de seus habitats naturais, e despejados num sofrimento com hemorragias incessantes.

Os interesses econômicos não deixam que isso seja tomado como, pelo menos, verossímil. Por muito que haja animais sagrados em certos países, os produtos de origem animal não podem ser deixados de circular nos mercados, sob a pena de fragilizar e penalizar o êxito socioeconômico de cada país. Pelo meio, retiram-se orelhas, caudas, reduzem-se bicos, entre outros meios de tortura. Tudo em vista de obter o benefício do ser animal. Mal este é colhido deste, seu destino não só não se torna ambíguo, como cruel. Em vez da produção em massa, entra o animal em massa - sua descaracterização e desvalorização despersonaliza cada um, deixando-o ao encargo da sorte, que balança entre o azar e a tragédia, entre a morte repentina e paulatina.

Os instintos sanguinários e primitivos do ser humano não findam aqui. Para fundamentar e fomentar seu lazer, surgem os espetáculos tauromáquicos, os rodeios, para além da caça e pesca, para os quais já se junta a particularização de serem considerados esportes. Os circos alimentam perspectivas legítimas daqueles que reivindicam os direitos dos animais, constante e violentamente violados nas texturas de espetáculos pobres em conteúdos, mas ricos em lucros. O treino do animal é baseado em castigos, que são tudo menos instrutivos e benévolos para a própria domesticação. Para além disso, as condições em que vivem, degradantes e descontextualizadas de suas raízes, são patentes e marcantes, assim como os jardins zoológicos, imponentes na forma como cativam os mais jovens na demonstração da ampla fauna mundial.

Por fim, a ciência. As constantes experimentações nas espécies, tanto provenientes das farmácias quanto das cosméticas e ambas fontes de indústrias de vulto, movimentam quantias exorbitantes para estudos e testes intrusivos que violam gravemente o bem-estar físico, mental e emocional do animal. Os laboratórios não se limitam a um mero estudo, em que a ética seja inerente à prática científica. Longe vão os tempos em que a ciência era a luz transparente de um caminho idílico de atuação. 

Desde 2005, ano de produção de Terráqueos, em que essa realidade foi sendo desdobrada, até os dias de hoje, muito foi feito. Foram várias as vitórias em prol dos direitos elementares dos animais, seres sencientes à imagem dos humanos, mas despojados de qualquer autonomia proveniente da consciência. As instituições fortaleceram-se, as causas chegaram às mais altas instâncias políticas, tanto nacionais quanto internacionais, e nós, seres humanos, estamos mais cientes e sintonizados do valor de verdade associado ao documentado. Para além disso, a afeição em relação ao animal vai aumentando, nem que seja pelo carinho que cada um desencadeia nos corações dos mais ou menos sensíveis. Não obstante, os desafios permanecem os mesmos. A cada dia que passa, a emergência de que vozes permaneçam a elevar-se por causas onde os lesados não têm voz vai-se reforçando.

A verdade não consegue ser refutada. Por mais que seja posta em causa, os fatos não deixam de ser a evidência daquilo que foi ou é. Também nisso estamos sustentados nas posições que assumimos, crescentemente a favor daqueles que não dispõem da tal voz ativa. A sensibilidade discursa com maior amplitude, mas sem se desprender da legitimidade daquilo que discute, daquilo que reivindica. Da ciência ao esporte, passando pelo comércio e pelas práticas mais primárias da economia, não são raros os casos em que a legislação tácita sobre os direitos dos seres sencientes é dizimada. De forma astuta, estão aí os canais de comunicação, sendo usados com critério e certeza. Quanto a atitudes a serem assumidas de fora para dentro, as consciências saberão o que dizer. Em cada um de nós, privilegiando a diferença que nos liga em igualdade.

Veja aqui Terráqueos, na íntegra e legendado. 

*Fonte: Comunidade Cultura e Arte  

Foto: Reprodução 

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