Por Hélder Ferraz
Quando trouxe meu gato aqui para casa, ele tinha um mês de vida, parecia mais um rato do que outra coisa qualquer. Os contínuos espirros denunciaram que ele estava constipado, o que em idade tão precoce pode levar à morte. Essa descoberta me levou a passar algumas noites acordado no sofá para restaurar a saúde daquele animal indefeso.
Na aldeia (do interior) onde cresci, a repulsa aos gatos era diametralmente oposta à estima pelos cães. Lembro que as histórias que contavam atrocidades com os gatos eram alegres e impunes e a maioria denunciava o ávido e macabro gosto humano pela violência. Aliás, nas décadas de 1980 e 1990, a violência fazia parte da construção da masculinidade e o autoritarismo era frequente para manter o respeito e a ordem, ambos elementos fundamentais no processo educativo, bem visíveis em instituições como a família e a escola. A matança do porco (um dia de festa em família), perder a virgindade (o pai levar o filho no início da puberdade a uma prostituta) e a professora estar autorizada, pelos pais, a bater nos estudantes, eram episódios frequentes e vistos com naturalidade no seio da comunidade. Portanto matar um gato era um ritual, entre outros, de afirmação da masculinidade.
O fato de o gato manter sua origem selvagem torna-o um animal doméstico "incompleto", e por isso, em último caso, "impossível" de educar — se bem que seja um animal que prime pela higiene mais do que muitos humanos e nenhum de nós lhe ensinou coisa alguma a esse respeito. Ainda hoje, quando alguém diz não gostar de gatos, a primeira justificativa remete, geralmente, para o comportamento insubmisso, desleal e pouco devoto aos humanos. Acho sempre irônico como “as marcas” da educação acabam por se espelhar na forma como consideramos o mundo à nossa volta. Costumo dizer que cada um prefere o animal de estimação com o qual se identifica, e isso não é uma crítica, mas uma constatação de que nossas preferências são ditadas, muitas vezes, pela nossa resistência ou adesão às convenções sociais que nos são impostas ao longo das nossas vidas. A impossibilidade de subjugar o gato torna-o uma ameaça à autoridade humana e nós não gostamos que desafiem nossa autoridade, tampouco um animal de estimação.
Temos muito que aprender com os gatos, individual e coletivamente. Fomos, todos, tão bem domesticados, tão devotos e subservientes às lideranças e às hierarquias que nos custa e irrita quem tende a manifestar resistência a essa ordem estabelecida. Assim como nos irrita quem não passa o tempo a bajular “as altas patentes” e prefere manter-se sempre próximo da “classe trabalhadora”. Temos muito que aprender com os gatos.
O gato aqui de casa se chama Che e, ontem à noite, enquanto eu via um filme, ele perseguia atormentado uma mosca, percorrendo ora lentamente, ora com uma rapidez incrível, todos os cantos da sala na tentativa de caçá-la, mas a tarefa se mostrou tão ingrata que acabou por desistir e aconchegar-se nas minhas pernas.
Fonte: Pet P3
Foto: Andrea Natali
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