Al Gore no filme Uma Verdade mais Inconveniente (An Inconvenient Sequel: Truth to Power, 2017)
Pouco mais de 10 anos atrás, Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, usou o cinema pela primeira vez como plataforma para falar da mudança climática, em Uma Verdade Inconveniente (An Inconvenient Truth, 2006). Dirigido por Davis Guggenheim, o filme venceu o Oscar nas categorias documentário e canção original. Na época, Gore, cujo interesse em problemas climáticos data da década de 1960, era considerado uma das poucas vozes eloquentes a exigir do mundo atenção para a questão. As coisas mudaram um bocado desde então. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2007 e, hoje, é comparado a personagens da cultura pop como Jon Snow de Game of Thrones.
A assinatura do Acordo de Paris, dois anos atrás, com medidas para reduzir a emissão de carbono, por 194 dos 196 países membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, foi uma vitória e tanto dos ativistas do meio ambiente - entre eles, Al Gore. Porém as dificuldades permanecem. Por isso, ele aceitou fazer um segundo filme, Uma Verdade mais Inconveniente (An Inconvenient Sequel: Truth to Power, 2017), que fez parte da 41a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo antes de sua estreia, que será em 9 de novembro.
O documentário, dirigido por Bonni Cohen e Jon Shenk, segue Gore em suas peregrinações pelo mundo e acompanha de perto as negociações difíceis para a assinatura do Acordo de Paris. Em junho, o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a saída de seu país do Acordo. Mesmo assim, Al Gore se mantém otimista. “A boa notícia é que o resto do mundo simplesmente disse que não haveria nenhum impacto, que todos ainda estavam dentro do Acordo, incluindo muitos dos estados e cidades norte-americanos e empresas. Vamos conseguir atingir as metas. Trump não pode impedir”, disse Gore em entrevista à revista Veja durante o Festival de Zurique.
Confira a entrevista.
Como o senhor se sente sobre ter sido necessário fazer uma sequência do documentário?
Senti que uma década passada do primeiro filme era um tempo justo para pedir permissão ao público para apresentar as novidades. E há duas grandes mudanças na última década: a primeira é que os eventos climáticos extremos estão bem mais severos e comuns, e a segunda é que agora temos as soluções.
Acredita então que estamos no momento da virada?
No momento da virada política. E temos de evitar alguns dos pontos de virada ecológicos que significam que ultrapassamos nossa habilidade de gerenciamento.
Há personagens da cultura pop, como Jon Snow de Game of Thrones, que são comparados ao senhor. Acha que há um aumento na consciência em relação à mudança climática, em comparação a 10 anos atrás?
Certamente. E o fato de os eventos climáticos estarem mais severos e comuns tem um grande papel. Por exemplo, os furacões que aconteceram nos Estados Unidos nas últimas semanas. Ou a tragédia de Bondo, aqui na Suíça, em agosto. No fim, a mãe natureza é uma militante muito mais persuasiva do que eu.
Bill Gates diz que precisamos de um milagre energético. O senhor acredita que necessitamos dessa única invenção revolucionária ou deveríamos simplesmente implementar as tecnologias que já temos?
O milagre que precisamos já aconteceu, com o custo caindo exponencialmente para energias renováveis, baterias, carros elétricos, LEDs, milhares de outras tecnologias eficientes. Então esperar por um milagre quando outro já aconteceu e está sendo implementado a todo vapor não me parece a resposta correta. No entanto, certamente concordo que seria bom termos um progresso mais rápido e mais financiamento de pesquisa e desenvolvimento em energia. Mas temos aquilo que precisamos.
O senhor se tornou vegano, mas disse que essa é uma decisão pessoal de cada um. O ex-presidente George H.W. Bush disse: “Nosso estilo de vida não está em discussão”, afirmando que os Estados Unidos não iam ceder em seus hábitos de consumo para diminuir seu impacto no clima. Então o senhor concorda com ele?
Não faço essa correlação como você. Entendo o que está dizendo, mas me tornei vegano cinco anos atrás como um experimento. E me senti melhor, porém, não vejo isso como algo similar a incentivar as pessoas a comprarem veículos elétricos. Sua dieta é uma escolha pessoal, mas eu incentivo todos a consultarem seus médicos, que vão confirmar que comer menos carne vai torná-los mais saudáveis. Isso já está estabelecido pela ciência. Aliás, esse é um problema quando os países em desenvolvimento progridem, porque o consumo de carne aumenta. Mas não podemos dizer às pessoas para não comer carne. Podemos mostrar alternativas. Eu pessoalmente me sinto incomodado de dizer a você o que comer no seu jantar. Posso alertá-la sobre os efeitos em sua saúde, mas ainda assim é você quem vai tomar a decisão.
Um dos momentos importantes do documentário é quando o senhor tem uma reunião com o ministro da Energia da Índia, que diz que não é justo países que poluíram o ambiente e usufruíram dos combustíveis fósseis agora inibirem o uso para os países em desenvolvimento. Já ouvi esse argumento muitas vezes no Brasil. Um dos efeitos do desenvolvimento econômico é justamente que as pessoas passam a consumir mais carne ou compram carros. Como convencer os países em desenvolvimento a entrar na luta pelo meio ambiente?
No filme, é muito fácil entender os argumentos do ministro da Energia da Índia. É compreensível. Mas há duas respostas para seus argumentos. A primeira é que eles não podem respirar o ar em suas cidades agora. E seu povo está dizendo que é preciso mudar para seu próprio bem. A segunda é que, 100 anos atrás, a Suíça e os Estados Unidos teriam usado fontes de energia não poluentes como solar e eólica, se fosse possível na época. Agora, os países em desenvolvimento têm a oportunidade de pular as tecnologias sujas do passado, limpar seu ar, criar mais empregos e impulsionar sua economia. Hoje, nos Estados Unidos, os empregos em energia solar crescem 17 vezes mais rapidamente do que os outros empregos na economia. E, desde o Acordo de Paris, a Índia passou por uma transformação dramática em suas políticas, tendo fechado 37 minas de carvão neste ano. O país está expandindo enormemente sua capacidade em energia solar - acabou de anunciar que em 13 anos todos os carros novos terão de ser elétricos. Uso no filme o exemplo da tecnologia em telefones. Os países em desenvolvimento pularam os telefones fixos e foram direto para os celulares. Queria chamar sua atenção para aquela mulher que veio me dar um abraço forte logo depois de encontrarmos a delegação da Índia. É Izabella Teixeira, chefe da delegação brasileira. E nos bastidores ela foi uma das minhas principais aliadas.
O senhor foi muito persistente com os indianos. Vai ser tão persistente com o atual presidente dos Estados Unidos, que diz que vai sair do Acordo de Paris? Vai tentar conversar com ele novamente?
Acho que ele é meio um caso especial, você deve ter notado. Fui muito persistente em falar com ele depois da eleição e depois que se tornou presidente. Mas honestamente, depois de seu discurso dizendo que ia se retirar do Acordo de Paris, não tive mais comunicação com ele. E não planejo ter. Talvez outra pessoa possa ter sucesso onde eu falhei. Não pretendo perder mais tempo porque não sei como mudar sua opinião. Não entendo sua mente. Não sei se ele entende ou não. A boa notícia é que, após seu discurso, o resto do mundo simplesmente disse que não haveria nenhum impacto, que todos ainda estavam dentro do Acordo, incluindo muitos dos estados e cidades norte-americanos e empresas. Vamos conseguir atingir as metas. Trump não pode impedir. Ele não é irrelevante, mas se isolou. Então sua capacidade de causar danos ou atrasar o movimento não é a que eu temia.
Chegaria a dizer que ele na verdade foi bom para a luta?
Não, não, não. Ele é péssimo em todos os aspectos. Sinto que vamos enfrentar tempos bastante desafiadores nos Estados Unidos nos próximos meses. Não temos nem um ano ainda nesse experimento.
O capitalismo é baseado no consumo. O senhor acha que é preciso haver mudanças fundamentais nessa relação? Tem esperanças de que isso aconteça?
Sim e sim. Não concordo com quem diz que o capitalismo em si precise ser descartado. Porque as alternativas ao capitalismo à esquerda e à direita foram tentadas no século 20 e não funcionaram bem. Os pontos fortes inerentes ao capitalismo são bastante óbvios. Mas há distorções na forma de capitalismo praticada hoje. Não medimos externalidades negativas, a poluição sendo a mais famosa, então usamos a atmosfera como um esgoto a céu aberto. Não medimos externalidades positivas, significando que, quando investimos em saúde mental, serviços familiares, educação de qualidade, contamos como despesas. Mas nos anos seguintes, quando há retorno dos benefícios, eles não são mensurados. Não medimos a diminuição dos recursos naturais, então somos cegos à destruição do solo superficial, das reservas subterrâneas de água, florestas e pântanos. E não medimos a distribuição de renda e patrimônio líquido, então estamos cegos ao aumento da desigualdade, com o fosso entre ricos e pobres crescendo a níveis extraordinários, o que tem muito a ver com o surgimento do autoritarismo populista. Com Trump, Brexit, Duterte, o que está acontecendo na Turquia e infelizmente há outros exemplos. Nós podemos fazer essas reformas. Elas não são fáceis, mas somos capazes.
Então a desobediência civil pode ter um papel? Li que sua filha foi presa ao protestar contra a construção de um gasoduto.
Os tempos definitivamente são outros quando um pai diz que está orgulhoso de sua filha ter sido presa! Ela foi presa porque se deitou na vala aberta para a construção de um gasoduto e tive tanto orgulho dela! Eu respeito e apoio quem decidiu pela desobediência civil não violenta. Eu nunca fiz isso, mas o movimento pelo meio ambiente é feito de pessoas diferentes agindo de maneiras diferentes.
O senhor ainda tem orgulho de ser norte-americano?
Sim, eu tenho. Mas estou muito envergonhado de que Donald Trump seja o presidente dos Estados Unidos. E sinto muito que meu país esteja apresentando ao mundo comportamentos que levam a tanta decepção e preocupação sobre a capacidade dos Estados Unidos de prover a liderança moral que teve no passado, quando estávamos no nosso melhor. Mas sempre sou orgulhoso de ser americano. E como consigo conciliar esses dois sentimentos? A Constituição e os sistemas norte-americanos são muito sólidos. Algumas das medidas de Trump foram bloqueadas pela Justiça, o Congresso se recusou a implementar outras. Os governos estaduais e municipais também. Mas é extremamente preocupante ter um presidente desses. E, como disse antes, os próximos meses vão ser um desafio para meu país. Acho que há caos à frente. E as próximas décadas serão um desafio para o mundo porque não importa o que fizermos para resolver a crise climática, alguns dos efeitos vão continuar. Será um teste da coragem e do caráter da humanidade. Mas temos a capacidade de enfrentar o desafio.
Fonte: Veja
Foto: Paramount Pictures / Divulgação
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