Mel: relato de um ex-apicultor brasileiro sobre a crueldade envolvida na produção

Apicultores usam fumigador, aparelho que joga fumaça sobre as abelhas para desnorteá-las 
(Foto: Mercado Livre)



Muitas pessoas desconhecem os motivos pelos quais veganos não consomem mel. O depoimento de Leandro Petry, de Lajeado (RS), vai ajudar você a entender melhor a crueldade envolvida na produção desse “alimento”. Além do fator ético, o mel não é um “alimento” tão inocente quanto sempre nos fizeram acreditar. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não recomenda a ingestão de mel por crianças abaixo de um ano. O objetivo da orientação é prevenir a ingestão de esporos da bactéria Clostridium botulinum, bacilo responsável pela transmissão do botulismo intestinal.

Abelhas sentem dor?

Sim. "Os insetos possuem terminações nervosas similares às que nós, humanos, temos. Por isso, é razoável supor que eles possuem algum tipo de percepção sensorial equivalente ao que nós chamamos de dor. Além disso, o animal é capaz de fazer uma aprendizagem de esquiva, afastando-se de algo que lhe causa desconforto”, afirma o fisiologista Gilberto Xavier, da USP. 

Confira abaixo o depoimento do ex-apicultor – hoje vegano – Leandro Petry.

Relato de um ex-apicultor artesanal

"Por um período de cerca de seis anos, participei da extração de mel de modo bem 'artesanal', mas que pouco difere do modo profissional, uma vez que os equipamentos para tal atividade são baratos e de fácil aquisição e as técnicas aplicadas são de simples compreensão. O que produz certa difusão e homogeneização das práticas empreendidas tanto para consumo doméstico quanto para comercialização. Vi e participei também da apicultura com finalidade comercial, mas em poucas ocasiões. A atividade que ainda é vista de maneira passiva quanto ao bem-estar das abelhas, de nada faz jus a sua fama. A compaixão com os pequenos insetos é inexistente. E a responsabilidade ambiental, se não ausente, é muito pouca. Estudos comprovam que a introdução das abelhas Apis mellifera deturpa o bioma e gera a decadência das populações de abelhas nativas devido à competitividade interespécies. O que, por consequência, pode gerar a redução do número de exemplares e até mesmo a extinção de plantas nativas que têm sua reprodução vinculada à polinização feita exclusivamente pelas abelhas nativas. Adiante relato minha experiência com a apicultura no intervalo em que me encontrei como colaborador da prática.

A fase inicial do processo de retirada do mel consiste em acender a brasa dentro do fumigador, ferramenta utilizada para produzir fumaça, que tem por finalidade desnortear as abelhas para que não tenham a capacidade de atacar. O material utilizado para a combustão, nessa etapa, varia - no nosso caso, usávamos palha e sabugo de milho triturado na maioria das vezes, por serem de baixo custo, mas eventualmente um pouco de serragem era adicionado. Apicultores profissionais podem empregar outros comburentes comerciais de base vegetal, como carvão. A fumaça gerada por todos é densa e de difícil inalação, tanto que o mais leve dos ventos, ao carregá-la para próximo de nossos olhos, causava profunda irritação e logo nos induzia a lacrimejar. Para as abelhas, então, a menor das baforadas tombava-as ao chão, onde permaneciam por longo período, contorcendo-se e, não raramente, acabando por falecer. Seu sofrimento e sua morte não eram apenas provenientes da asfixia pela fumaça, mas também porque, logo que sai do bocal do fumigador, ela é muito quente e com isso acaba torturando e matando também pelo excessivo calor.

Após nos vestirmos e o fumigador encontrar-se apto para o serviço, passávamos a abrir as caixas onde se encontravam as colmeias. Primeiramente, dávamos uma baforada na abertura por onde as abelhas tinham o acesso do meio interno ao meio externo, e vice-versa, para que não saíssem da colmeia e nos atacassem. Esse era o nosso 'cartão de visitas', e já ele deixava claro o quão mal fazia a fumaça aos pequenos insetos, pois, a partir daquele momento, as abelhas tornavam-se muito agitadas e agressivas e algumas já faleciam. Na sequência, a caixa da colmeia era aberta e mais vezes o fumigador era posto para trabalhar, porém, agora diretamente sobre as abelhas, as larvas, os ovos e todas as demais estruturas da colmeia. O objetivo era impedi-las de voar e novamente nos atacar, entretanto muitas o faziam, mesmo que muito atordoadas e intoxicadas. Logo após alçarem voo para tentar nos atacar, acabavam por cair no chão e ali agonizavam, não raramente, até a morte, devido à fumaça.

Após esse agressivo processo da nossa parte, passávamos a tirar os favos de mel e logo procurávamos as celas que continham a geleia real e as larvas que dariam origem às próximas rainhas, para que as matássemos, impossibilitando a formação de novos enxames através de revoadas e possíveis enfraquecimentos da atual colônia. Nessa parte, além do aumento dos óbitos pelo uso do fumigador, matávamos muitas outras abelhas, pois esmagávamos, mesmo que sem intenção, muitas com as nossas mãos e com os instrumentos (espátula e faca) usados na etapa em questão.

A etapa seguinte dava-se pela centrifugação dos favos para a retirada do mel. Isso sempre era feito à noite, pois então as abelhas estavam menos ativas e podíamos nos vestir com roupas 'normais', pois com elas ficávamos mais à vontade, e nos tranquilizar quanto à possibilidade de sermos ferroados. Aqui, mais abelhas tinham suas vidas tiradas, produto da centrifugação, porque muitas permaneciam nos favos e eram postas justo com eles no centrifugador, onde morriam em grande número, fosse por afogamento no próprio mel que elas haviam fabricado, fosse por esmagamentos nas engrenagens da máquina utilizada nessa etapa.

Além dos passos da extração do mel, outros eram empregados no manejo das colmeias com a finalidade de manter a alta produção. Fazíamos visitas ocasionais em que inspecionávamos o tamanho do enxame e seu nível de vitalidade. Para tanto, durante as visitas, olhávamos as telas excluidoras de rainhas que têm como finalidade manter em reclusão a rainha e os zangões para que novos enxames não se formem e realizávamos a partição dos enxames para que se induzisse a criação de um novo sob nosso controle.

A participação por esses anos na apicultura trouxe-me a clara conjuntura de que a extração do mel sempre esteve longe de ser gentil e, não geral, traz morte e sofrimento às abelhas. Verdadeiramente, ela tem mais características para ser classificada como um roubo, uma vez que a própria palavra 'extração', ou 'retirada', não tem competência etimológica para compreender tamanha falta de valores éticos e morais em relação às abelhas, seja ela realizada com finalidade comercial ou para consumo próprio, em larga ou pequena escala, com ou sem a utilização do fumigador etc. Com base na minha experiência pessoal, posso afirmar que a apicultura está longe de ser uma prática pacífica, humanitária e compassiva com qualquer ser."

Leandro Petry
Ex-apicultor, ex-piscicultor, ex-pecuarista e ex-avicultor - hoje vegano
Lajeado (RS)



NOTA DA NATUREZA EM FORMA:

E as abelhas estão em extinção. Segundo estudo publicado pela Universidade da Pensilvânia em 2007, os primeiros casos registrados de desaparecimento das abelhas aconteceram em meados do século 19. Mas foi apenas em 2006 que a situação se tornou realmente alarmante (fonte: Mother Board). Os primeiros relatos foram nos EUA, mas hoje o problema também se manifesta na Europa e América Latina, particularmente no Brasil. 

Os possíveis responsáveis pelo fim das abelhas são o largo uso de pesticidas, desmatamentos, queimadas, monoculturas, plantações transgênicas e aquecimento global, além de causas naturais como ácaros e vírus. Ocorre também o ainda inexplicável distúrbio do colapso das colônias - "um fenômeno que parece enredo de filme apocalíptico para abelhas. As colmeias ficam simplesmente vazias", de acordo com o site da campanha Sem Abelha, Sem Alimento, criada pelo doutor especialista em genética das abelhas e docente aposentado da USP de Ribeirão Preto, Lionel Segui Gonçalves. 

Para o filósofo Trigueirinho, o comércio do mel e a exploração e maus-tratos nele envolvidos degenerou a pureza das abelhas. "As operárias estão fugindo, tomando outro rumo, deixando a rainha para trás. Isso nunca aconteceu. Só uma abelha degenerada não está afinada com a presença da rainha. Então, isso de as abelhas deixarem as colmeias, desaparecerem e não se saber para onde elas foram, é um ponto degenerativo que se deve ao homem", disse ele em uma de suas palestras.

Segundo informações do site Sem Abelha, Sem Alimento, das espécies conhecidas de plantas com flores, cerca de 88% dependem, em algum momento, de animais polinizadores; mais de 3/4 das espécies utilizadas pelo homem na produção de alimentos dependem da polinização para uma produção de qualidade e quantidade; 70% de todas as culturas agrícolas dependem dos polinizadores e estima-se que 1/3 de todos os alimentos que chegam à nossa mesa tenham alguma dependência dos polinizadores para serem gerados. 

Ressaltamos aqui que, embora a campanha do especialista da USP forneça dados importantes, tenha seu mérito educativo e mostre uma real preocupação com o destino das abelhas, nós, da Natureza em Forma, contestamos um de seus objetivos: "posicionar a apicultura e a meliponicultura como um elo fundamental e insubstituível da cadeia produtiva agrícola". Nada disso. 

Segundo o dicionário Michaelis, a apicultura é a "criação de abelhas por processos racionais, para extrair-lhes mel, cera, própolis etc. e para polinizar pomares". Quanto à "extração", o depoimento de Leandro Petry deixa claro os maus-tratos sofridos pelas abelhas nessa verdadeira exploração. Mas "polinizar pomares" não seria então a solução para a continuidade dos alimentos que dependem da polinização e ainda deixaria as abelhas felizes? Não. Os pomares em questão são plantações criadas com o único propósito de uma produção em escala e, em geral, são monoculturas (um laranjal, por exemplo), justamente uma das causas apontadas por biólogos para o desaparecimento das abelhas. Além disso, mesmo que a atividade de "polinizar pomares" fosse algo benéfico para elas, nenhum apicultor usa as abelhas apenas para isso, sem lucrar com seu "mel, cera, própolis etc.".

O que trará as abelhas de volta? Um ambiente natural, saudável, com biodiversidade, onde elas possam agir espontaneamente e fazer seu trabalho de polinização, multiplicando a vida entre as plantas. Como sempre fizeram antes de começarem a ser exploradas e "degeneradas", como bem diz Trigueirinho, pelo homem.

E a vida sem consumir mel é perfeitamente viável. Nas receitas, ele pode ser substituído por melado, xarope de bordo ou agave. O ativista Gary Yourofsky, em uma de suas palestras, dá uma razão extra para deixar de lado esse produto da exploração das abelhas: "O que é o mel? Ele vem diretamente do estômago da abelha, sendo regurgitado diretamente através de sua boca. O mel é o vômito da abelha". Quanto ao própolis, em casos de gripe e garganta inflamada, o óleo de copaíba e a aloe vera (babosa) são antibióticos naturais bem mais eficientes. 

Se nenhum dos argumentos acima foi suficiente para te convencer, pense no que disse o físico e gênio Albert Einstein: “Se as abelhas desaparecerem da face da Terra, a humanidade terá apenas mais quatro anos de existência. Sem abelhas, não há polinização, não há reprodução da flora; sem flora, não há animais; sem animais, não haverá raça humana”.

      Foto: Pixabay

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