Veganismo na infância não é crime - os riscos da falta de informação



Por Dr. Eric Slywitch*


"Dieta vegana para crianças pode virar crime na Itália." Devo dizer que, ao ler o título dessa notícia, demorei alguns segundos para entender se era isso mesmo. E é!

O projeto de lei foi proposto por um partido conservador no Parlamento Europeu e tenta transformar o veganismo infantil em crime. Os pais seriam processados por "infantoveganismo".

Consta no projeto que os pais podem ser processados por "imposição de dieta destituída de elementos essenciais ao crescimento infantil".

Já começa que "elementos essenciais" está no plural, sendo que o único elemento (e, portanto, singular) que pode estar ausente numa dieta vegetariana estrita é a vitamina B12. Essa vitamina é, de fato, fundamental para o nosso organismo e todas as diretrizes de acompanhamento de crianças vegetarianas recomendam sua suplementação. E não é só a dieta vegana que traz recomendações de suplementação, já que diversas diretrizes nacionais e internacionais preconizam, para crianças onívoras, a suplementação de ferro, vitamina A e vitamina D. Da mesma forma, nosso sal recebe iodo adicionado e as farinhas recebem ferro e ácido fólico. 

Tais cuidados foram tomados com a população onívora porque ao longo de décadas constatou-se potencial risco de deficiência desses nutrientes. O ferro pela rápida demanda do crescimento (sangue, músculos) ou perda de sangue intestinal por verminoses. A vitamina A ou betacaroteno pela ingestão inadequada de alimentos fontes (que em grande parte são do reino vegetal). A vitamina D pela insuficiente exposição à luz solar, impossibilitando nosso organismo de sintetizá-la. O iodo pelo risco de baixa produção de hormônio tireoidiano e bócio por ingestão insuficiente de alimentos que o contenham, tendo em vista que seu teor depende muito do local de cultivo do alimento. Ácido fólico pela ingestão insuficiente de frutas e verduras cruas.

Há todo um olhar de cuidado para a população com os hábitos mais comuns. Mas quem é minoria tende a ser desconsiderado quando se fala em saúde coletiva.

Para o partido italiano, punir parece ser mais fácil que educar. Educar os profissionais de saúde, que saem das universidades cheios de dúvidas sobre a condução da dieta vegetariana (de todos os tipos), e educar os pais, que muitas vezes têm ideias errôneas sobre a alimentação infantil. E na falta de educação de profissionais e pais, quem perde é a criança.

Há mais de 10 anos, atendo gestantes e crianças veganas, que estão sob meus cuidados crescendo e se desenvolvendo com saúde e segurança. Muitos dos pais que me procuram chegam desesperados pelo terrorismo infundado de profissionais de saúde que não leram as publicações sobre o assunto, reproduzindo os equívocos comuns que ouviram na faculdade.

Quando comecei a trabalhar com o vegetarianismo e crianças, juntei mais de 500 artigos científicos e comecei a ler, na íntegra, cada um deles, desde as primeiras publicações, que são da década de 1970. Li e resumi 150 deles, e faltam os demais ainda para poder criar um material bem sólido e robusto sobre o assunto, que possa ser usado por profissionais de saúde. Os títulos de grande parte deles são assustadores, ressaltando problemas ao adotar a dieta vegetariana. Mas quando lemos os materiais e métodos dos artigos, vemos claramente os erros alimentares e as conclusões errôneas dos autores. Muitas das crianças ditas vegetarianas não são vegetarianas (há inclusive várias que consumiam peixe diariamente ou eram macrobióticas) e condutas alimentares estranhas eram introduzidas às crianças, que teriam problema mesmo se a carne estivesse no cardápio.

Vou contar sobre três estudos. Mas antes, para os que não sabem, vale a pena saber que o leite materno é o alimento ideal (e deve ser o alimento exclusivo) para o bebê até seis meses de vida. Na impossibilidade de uso do leite materno, uma fórmula infantil com as características similares ao leite materno deve ser ofertada em seu lugar.

Vamos aos casos.

Em uma das publicações "científicas", uma comunidade religiosa (israelitas/hebreus negros) determinou que todas as crianças nascidas na comunidade deveriam, aos três meses de vida, ser retiradas do peito da mãe e alimentadas exclusivamente com suco de maçã com couve e um extrato ralo de soja. Obviamente, várias crianças, após algumas semanas, foram levadas para o hospital local (fora da comunidade) com desnutrição importante. Os artigos científicos publicados sobre esses relatos de caso fazem alarde aos problemas de crescimento decorrentes da dieta vagana ofertada para crianças. Dieta vegana? Isso não é uma dieta vegana! É uma invenção de conduta alimentar sem carne e derivados animais. As crianças ficariam desnutridas da mesma forma se nessa dieta houvesse um caldinho de carne.

Outro caso foi de uma família de judeus ortodoxos que cuidavam do quinto filho. O vizinho disse a eles que, se trocassem o leite materno por leite de gergelim, o bebê (com quatro ou cinco meses de vida) cresceria forte, saudável e sem alergias. Os pais do bebê fizeram isso. Detalhe: não havia nenhum vegetariano nessa história. Após algumas semanas, os pais tiveram de levar a criança ao pronto-socorro, pois algo estranho estava ocorrendo. O aporte calórico do leite de gergelim foi suficiente para manter o bom peso do bebê, mas ele estava com uma carência importante de magnésio (hipomagnesemia). Desse caso, surgiu um artigo dizendo que a dieta à base de vegetais é imprópria para crianças. Dieta à base de vegetais? Ou será que seria melhor publicar algo do tipo "a troca do leite materno por leite de oleaginosas é imprópria para a nutrição infantil"? Esse artigo tem, em seu localizador, como palavras-chave, "dieta vegetariana", e traz a impressão, ao ler seu título e resumo, de que estamos falando de dietas vegetarianas. Só vemos que não é isso ao lermos o trabalho na íntegra.

Há uma publicação numa revista de endocrinologia brasileira que relata o caso de uma menina que começou a apresentar desenvolvimento puberal precoce. Os pais, vegetarianos, ofertavam só alimentos com soja para a criança. E isso faz os profissionais desinformados pensarem que isso é uma dieta vegetariana! Novamente vamos pensar: se nessa dieta da soja que a menina recebeu houvesse um caldinho de carne, ela teria os mesmos problemas, mas daí não seria vegetariana, porque o que foi ofertado a ela não é uma dieta vegetariana, mas sim uma dieta de soja (sem carne).

Relatos e conclusões equivocadas como essas são comuns na literatura científica. Por outro lado, temos vários trabalhos que mostram que a dieta vegana bem planejada (como deve ser qualquer dieta - e não é à toa que os pediatras passam parte de suas consultas ensinando os pais a montar a dieta dos bebês onívoros) promove crescimento e desenvolvimento perfeitos. As diretrizes sobre o que deve ser feito com o cardápio das crianças é bastante simples. E a suplementação de B12 é universalmente recomendada.

Não é crime criar um filho vegano, pois os pais sempre procuram passar seus valores aos filhos. Inclusive a imposição de comer carne é muito comum em nossa sociedade, e grande parte das pessoas achar normal forçar alguém a comer carne quando esse alguém não quer. Crime talvez seja um sistema de ensino médico e nutricional não fornecer elementos para que os alunos saiam da faculdade sabendo avaliar, com certeza e segurança, o estado nutricional de proteína, ferro, cálcio e vitamina B12 de um paciente e sem saber como conduzir uma criança vegana. 

Como profissionais de saúde, aprendemos que aquilo que não sabemos tratar ou conduzir encaminhamos para quem sabe. É diferente de: se eu não sei conduzir, tratar, ou só ouvi falar sobre o tema, eu invento mentiras e crio terrorismo em cima.

Muitas linhas filosóficas sugerem condutas de risco para crianças veganas e isso deve ser desmitificado pelo profissional de saúde que atende os pequenos vegetarianos.

O problema que está em discussão aqui não é a segurança de uma dieta vegana, pois isso já é bem sólido na literatura científica. A discussão aqui é sobre ignorância (condição em que a pessoa não tem conhecimento da existência ou funcionalidade de algo), seja dos pais, seja dos profissionais de saúde, seja das políticas públicas, seja da forma com que o projeto de lei está sendo proposto.

A opção pela alimentação vegetariana vai aumentar cada vez mais, pois não há mais possibilidades ambientais de isso não acontecer.

As políticas públicas terão de olhar para isso e as diretrizes de entidades de classe ou especialidades médicas deverão ensinar os profissionais a conduzir os pais que seguem a dieta vegetariana. Mesmo porque desencorajar uma família vegana a criar um filho vegano, especialmente se a opção foi por questões éticas, é uma tentativa inglória, e corre-se o risco de os pais buscarem, sozinhos, orientações totalmente errôneas, colocando a criança em risco.

* Fonte: Dr. Eric Slywitch, em sua página no Facebook

Foto: Free Images

Nenhum comentário:

Postar um comentário