“Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora de comer” (Arte: Reprodução)
O paraibano Augusto dos Anjos, por vezes qualificado como simbolista, parnasiano e pré-modernista, era na realidade um poeta solitário que pouco se via no contexto de qualquer corrente literária. Assim como muitos outros artistas, sofria com o anacronismo em relação às suas obras, poemas que fundamentados num tipo peculiar de panteísmo místico já externavam uma conexão entre o homem e a natureza, algo pouco compreendido até seu falecimento precoce, aos 30 anos. Embora não haja registros sobre os hábitos alimentares de Augusto dos Anjos, não há dúvidas de que ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a consciência vegetariana em suas obras. Ou seja, foi muito além da escatologia e consciência da morte enquanto tema.
Sofredor é o termo coloquial que melhor define a essência do poeta paraibano que raramente se via livre da cefaleia e do desconforto existencial. Dotado de exímia sensibilidade, Augusto dos Anjos cristalizava suas insatisfações, anseios e observações com a mesma angústia do simbolista francês Arthur Rimbaud. E talvez esse fosse o maior indicativo de que ele era "humano, demasiado humano", como no conceito criado e publicado por Nietzsche em 1878.
Educado em casa pelo próprio pai, um profícuo homem das letras, Augusto dos Anjos se identificou na infância com a linguagem das ciências naturais, o que o motivou a criar seus primeiros sonetos aos sete anos. “Desde a mais tenra idade, me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quanto concerne ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida física”, disse o poeta em entrevista concedida a Licínio Santos em 1912 e publicada no livro A Loucura dos Intelectuais, em 1914.
E o rigor moral realmente acompanhou o escritor ao longo de toda a vida. A maior prova são seus poemas publicados na obra póstuma Eu e Outras Poesias, lançada por iniciativa da Imprensa Oficial do Estado da Paraíba em 1920. No livro, sua consciência da relação dissonante da humanidade com a natureza é apresentada de forma ácida e veemente. Em À Mesa, a mórbida ironia revela a leviandade e a consciente cumplicidade humana no ato de se alimentar de animais:
Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de carne morta… Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!…
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
“Quando a faca rangeu no teu pescoço, ao monstro que espremeu teu sangue grosso”
(Imagem: Reprodução)
No bucólico Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, sua cidade natal, Augusto dos Anjos chegou a conduzir sessões de mediunidade. Ainda assim, ele jamais se viu como um religioso. Muito pelo contrário, suas obras sempre abordaram de forma satírica as mais pertinentes contradições que permeiam o cristianismo. No entanto, isso nunca o impediu de se identificar com o panteísmo, assim como o célebre e também incompreendido poeta inglês William Blake.
Quem sabe o escritor paraibano tenha sido atraído pelo fato de que a doutrina se baseia no reconhecimento de Deus em tudo que compõe a natureza. E a partir dessa influência, Augusto dos Anjos fez cabais associações entre a tradição mística do Ocidente, o cientificismo que o acompanhou por toda a vida e a cultura oriental fundamentada em religiões védicas da Índia. Esse hibridismo e a constante busca pela sabedoria provavelmente tinham relação com sua ânsia por entender o mundo, os seres humanos e sua relação com todas as formas de vida.
Exemplos de sua aspiração transcendental são os poemas O Meu Nirvana e Budismo Moderno, publicados no livro Eu, de 1912. Extremamente sensível, Augusto dos Anjos se empenhou em encontrar em fontes orientais um amenizador para a inquietude que o atormentava. “Sinto uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar”, confidenciou em entrevista a Licínio Santos. E foi essa emotividade à flor da pele que o motivou a escrever A um Carneiro Morto, de 1909, que fala da desproporcionalidade entre a empatia animal e a truculência humana.
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
“E o animal inferior que urra nos bosques /
É com certeza meu irmão mais velho!”
(Arte: Reprodução)
Alimentado com leite de escrava na infância, Augusto dos Anjos não se orgulhava de sua herança fundamentada no patriarcalismo rural. Ele cresceu desinteressado pela socialização, o que lhe garantiu o apelido de “o homem ausente”. Importantes nomes da literatura brasileira, como Orris Soares e José Américo de Almeida, o descreviam como um sujeito de tez pálida e morena, mais alto do que baixo, franzino e recurvo, de fronte alongada e grandes olhos sem mobilidade. Suas mãos eram moles e denunciavam timidez. Andava como se estivesse sempre na ponta dos pés, e de longe sua magreza excessiva chamava atenção pelo aspecto insalubre. E nada disso lhe parecia relevante, talvez até insignificante, já que para além do trabalho ele vivia imerso em si mesmo e na própria poesia. Em A Obsessão do Sangue, Augusto dos Anjos discorre sobre a barbárie consentida entre o açougueiro e o consumidor que se excita diante da carne a ser servida:
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão…
E amou, com um berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
Graduado em direito, o poeta jamais atuou como advogado. Preferiu o magistério e se tornou professor no Liceu Paraibano. Casou-se em 1910 e logo se mudou para o Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal e Ginásio Nacional. O salário era tão modesto que ele mal conseguia sustentar a família. Ainda assim, prosseguia escrevendo, dando vazão à sua vocação. No poema Monólogo de uma Sobra, Augusto dos Anjos reafirma sua crença na relação entre a solidariedade, o cosmo e o misticismo. Em um excerto, ele escreveu:
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Depois de quatro anos, e atendendo a recomendações médicas, o poeta migrou para Leopoldina, em Minas Gerais, com a esposa Ester Fialho e os dois filhos. Lá, ele exerceu o cargo de diretor do Grupo Escolar até falecer, em 12 de novembro de 1914, em decorrência de pneumonia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis…
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancava fósseis.
Assim escreveu Augusto dos Anjos em Estrofes Sentidas, possivelmente o poema que melhor sintetiza sua empatia por todos os seres vivos, mesmo diante da própria finitude extemporânea.
Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884, em Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, na Paraíba. Eu, seu único livro de poesia publicado em vida, foi lançado no Rio de Janeiro em 1912. Os escritores preferidos do poeta eram William Shakespeare e Edgar Allan Poe.
Referências
Dos Anjos, Augusto. Eu e Outras Poesias. Bertrand SP (2001)
Santos, Licinio. A Loucura dos Intelectuais (1914)
Figueiredo, José Maria Pinto. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Universidade Federal do Amazonas (2012)
Paes, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Novos Estudos (2008)
Viana, Chico. Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos (2007). Disponível em chicoviana.com
Erickson, Sandra, S. F. Augusto dos Anjos: Budismo Moderno. XVII Anais: Semana de Humanidades. UFRN (2010). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/shXVIII/artigos/G T05/Sandra%20S.F.%20Erickson.pdf
Nóbrega, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da Paraíba (1962)
Sabino, Márcia Peters. A questão da religiosidade em Augusto dos Anjos. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/viewFile/25201/14017
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