Por David Arioch*
Assisti a um vídeo do filósofo Luiz Felipe Pondé criticando o veganismo. Obviamente, meu objetivo não é desconsiderar seu trabalho como filósofo nem sua figura humana, mas sim apontar falhas substanciais em seu discurso O que eu acho do veganismo?.
Enquanto fuma um charuto, Pondé começa dizendo que uma pessoa sem vícios não deve ser merecedora de confiança. Bom, discordo, até porque tento sempre evitar generalizações. Na minha opinião, vícios quase sempre surgem com escolhas pessoais e, em muitos casos, como consequência de uma fragilidade que pode inclusive reafirmar uma volatilidade moral, já que o vício reflete uma ausência de autocontrole, e isso pode implicar prejuízo não apenas para si mesmo como também para os outros. Sendo assim, essa fragilidade pode criar uma ilusão de que temos o domínio de algo que na realidade tem o domínio de nós. Mas, claro, ainda vivemos em uma realidade em que cada um é livre para optar ou não por ter vícios.
Pondé afirma que é contra qualquer tipo de pureza, a busca pela pureza. Bom, veganismo não é sobre pureza. Claro, buscamos o abolicionismo animal, mas não vivemos imersos em uma realidade ultrarromântica. Veganos têm consciência de suas limitações, e ainda assim aceitam o desafio de fazer o possível para reduzir impactos na vida dos animais. Segundo o filósofo, “as pessoas têm o direito de comer o que quiser, contanto que não seja outros seres humanos”. Esse é um ponto crítico sob a perspectiva vegana. O chamado “direito” do ser humano de se alimentar de outras criaturas não foi “concedido” por ninguém a não ser por ele mesmo, logo uma arbitrariedade, já que consiste em subjugar outros animais sencientes e conscientes, ignorando seus interesses, ou seja, o direito à vida.
“Os animais são sujeitos de uma vida? Essa é a pergunta que precisa ser feita sobre os animais porque é a pergunta que precisamos fazer sobre nós”, escreveu o filósofo Tom Regan no livro Jaulas Vazias. Segundo Regan, não podemos declarar que o motivo pelo qual nós, enquanto seres humanos, temos direitos é porque somos igualmente sujeitos de uma vida, mas outros animais, que são exatamente como nós enquanto sujeitos de uma vida, bem, eles não têm nenhum direito. “Isso seria como se colocar diante do mundo e gritar: ‘Um Volvo não é um carro porque um Volvo não é um Ford!’”.
A opinião de Luiz Felipe Pondé, ao defender o ato de matar animais e consumi-los como um direito, é evidentemente especista e antropocêntrica. Em síntese, é uma defesa de status quo, da perpetuação do que já existe e é praticado. Seu posicionamento não reconhece a defesa dos direitos animais e menos ainda a legitimidade da teoria abolicionista animal, que defende que os animais não existem para os nossos próprios fins, em qualquer circunstância.
Pondé diz que não cabe condenação a quem consome proteína animal. Acredito que depende. Não vejo necessidade em atacar pessoas, realmente, até porque isso é contraproducente. Porém, de forma conscienciosa, considero imprescindível criticar com probidade nosso papel enquanto espécie e nossa iníqua relação com os outros animais, até porque as pessoas não costumam refletir sobre seu papel em relação às outras espécies, por considerá-las inferiores. Então a conscientização é importante. Afinal, matamos por ano, e não por uma questão de necessidade, bilhões de criaturas que, assim como nós, gostariam de viver, não de morrer. Não há romantismo nisso, mas apenas a constatação da realidade. Ninguém nasce ansiando pela própria finitude.
Para Pondé, muitas pessoas aderem ao veganismo “por uma certa tensão puritana”. Discordo. Veganos não são isentos de vícios, não são seres perfeitos nem se julgam como tal. Pelo menos desconheço quem faça isso, e se há casos desse tipo é uma questão de equivocada construção individual, sem respaldo na filosofia de vida vegana. Basta analisarmos a história do veganismo e o trabalho de seus principais pensadores e teóricos. A observação de Pondé me parece mais próxima do vegetarianismo místico do que do veganismo quando cita “puritanismo”, “puritano”, “purismo”, “pureza”, embora sejam palavras que compõem um grande escopo de significados, até mesmo antagônicos em alguns aspectos. Na realidade, o veganismo é bem prático. Basta partirmos da seguinte premissa: “Se posso viver bem sem matar ou tomar parte na morte de outros seres vivos, por que fazer isso?”.
Pondé enfatiza que outro grande equívoco é “a ideia de que você pode se retirar da cadeia de violência da natureza”. Bom, não conheço veganos que afirmem categoricamente que estejam completamente livres da cadeia de violência, até porque a maioria vive a realidade urbana, e nesse contexto é mais difícil ainda se livrar das armadilhas que envolvem a exploração animal, já que o ser humano subjuga outras espécies de forma tão visceral que até mesmo pneus contêm insumos de origem animal, como é o caso do ácido esteárico, baseado em gordura bovina. Porém nada disso impede a luta para diminuir cada vez mais essa exploração, demandando alternativas que não envolvam agrilhoamento e morte de outras espécies. Veganismo é sobre o aperfeiçoamento em nossa relação com outros animais, até alcançarmos um objetivo maior que é o abolicionismo animal. Se temos condições de mudar hábitos desnecessários, que impactam negativamente outras vidas, por que não fazer isso? Por que não mostrar para as outras pessoas que é possível viver bem gerando menos violência? Como consequência, isso reduz a objetificação animal.
Outra observação feita pelo filósofo Pondé é a de que o veganismo “deixa a experiência humana do gosto um pouco cerceada”. Bom, veganos não vivem em privação alimentar. Temos uma grande riqueza de alimentos vegetais acessíveis à nossa disposição, e são eles que dão inclusive sabor aos alimentos de origem animal. Afinal, que gosto teria, por exemplo, a carne, sem os temperos de origem vegetal? O que deixa claro que, do ponto de vista alimentar, vegetais são essenciais, ao contrário dos alimentos de origem animal. Até porque a existência de veganos é a prova maior de que ninguém morre sem consumir animais.
Luiz Felipe Pondé também diz que veganos consideram assassinos quem come carne. Bom, não vejo dessa forma, e acredito que quem entende o veganismo em essência sabe que o consumo de carne é um infeliz fator histórico e cultural baseado no costume. A própria literatura vegana e dos direitos animais discorre sobre isso exaustivamente.
Para Pondé, veganos buscam uma espécie de pureza que não existe. “Esse tipo de pureza para mim não é diferente daqueles calvinistas doidos que queimavam gente e achavam que tudo era o demônio.” Sim, há pessoas que ficam exacerbadas diante do sofrimento animal, da exploração contumaz, e acabam cometendo alguns excessos em seus discursos, porém, não cabe generalizações. Esse comportamento é reflexo de uma ânsia por justiça para animais não humanos. Quero dizer, há boa vontade nisso, o problema é que ela pode ter ancorado em uma falha de comunicação imersa nos arroubos da passionalidade.
Se você dialogar com um vegano, por mais ofensivo que considere seu discurso, vai perceber que se trata de uma pessoa bem intencionada que busca e sonha com o melhor para os animais. Comparar veganos com terroristas é bastante surreal, levando em conta que não há registros de arbitrariedades desse tipo praticadas por veganos. Você não encontra veganos violentando quem não é, matando pessoas. Nem mesmo os grupos de ação direta costumam praticar ou defender qualquer tipo de violência quando decidem articular alguma ação em benefício de animais não humanos.
“Tem aí um filósofo chamado Peter Singer, uma espécie de guru, apesar de que muitos veganos nem sabem disso”, afirmou Pondé. Não duvido que haja veganos que realmente nunca ouviram falar em Peter Singer e seu livro Libertação Animal, porém, isso não faz de alguém mais ou menos vegano, até porque obras de direitos animais quando chegam ao Brasil costumam custar caro, logo não são realmente acessíveis a todos. Além disso, depois de Singer, e principalmente a partir dos anos 1980, outros filósofos e pensadores escreveram sobre o assunto, inclusive seguindo por um caminho diferente e independente de Singer. Também é importante considerar que hoje em dia há muito material sendo produzido sobre o tema e disponibilizado na internet em forma de artigos, o que também tem contribuído bastante para uma melhor conscientização em torno do veganismo e dos direitos animais. Ou seja, não há mais uma dependência de meios tradicionais.
“O que eu critico no veganismo é uma percepção sensorial estética infantil da realidade associada a uma expectativa purista e moralista. E eu não gosto de purismo e moralismo.” Sobre essa citação de Luiz Felipe Pondé, devo dizer que a considero bem baralhada. Tanto purismo quanto moralismo não têm a ver com veganismo. Veganismo é uma perspectiva não excludente da moralidade, enquanto o moralismo é baseado em preceitos proverbiais que ignoram a particularidade e a complexidade de uma situação. Na realidade, o veganismo faz exatamente o oposto do moralismo, que é fundamentado na tradição, uma tradição cediça. Acredito que “percepção sensorial estética infantil” seja aquela despertada pela propaganda da indústria da exploração animal, ou seja, em que a subjugação ou morte de um ser vivo é romantizada e celebrada. Exemplos disso são as embalagens de produtos, os comerciais da Sadia etc. ou até mesmo a histórica e recorrente dissociação entre produto e morte. Essa negação, no meu entendimento, também é uma “percepção sensorial estética infantil da realidade”, assim como situações em que pessoas que comem carne ficam surpresas e sensibilizadas com algum fato que envolva a exploração animal. Posso citar como exemplo o caso recente em que uma moça ficou horrorizada porque encontrou um mamilo em um pedaço de bacon. Isso não seria “percepção sensorial estética infantil da realidade”? Eu digo que sim.
Em síntese, achei o vídeo do filósofo Luiz Felipe Pondé criticando o veganismo vacilante e equivocadamente pontual. Parece que ele se baseou em alguns exemplos de comentários que viu por parte de alguns veganos na internet e usou isso para fundamentar sua crítica, ignorando o que realmente é a filosofia de vida vegana, e provavelmente não tendo a preocupação de buscar sólidas referências. Por outro lado, não posso deixar de reconhecer que há um ponto positivo nessa crítica. E qual seria? Ele não teria feito um vídeo falando de veganismo se o tema não estivesse em evidência. Então é claro que as críticas vão crescendo de acordo com a visibilidade e adesão ao veganismo. Para finalizar, parafraseio Adam Smith, uma das referências filosóficas de Pondé, no capítulo 2 do quinto livro de A Riqueza das Nações: “Pode-se duvidar de que a carne do açougue seja necessária à vida em qualquer lugar”.
Foto: YouTube / Reprodução
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