Gatos da vida REAL




Por Paulo Furstenau*


“Centenas de milhares de gatos vagam pela metrópole de Istambul livremente. Durante milhares de anos, eles entraram e saíram da vida das pessoas, tornando-se uma parte essencial das comunidades que tornam a cidade tão rica. Não reivindicando nenhum dono, esses animais vivem entre dois mundos, nem selvagens nem domesticados - e trazem alegria e propósito para as pessoas que eles optam por adotar. Em Istambul, os gatos são os espelhos para as pessoas, permitindo-lhes refletir sobre suas vidas de maneiras que nada mais poderia.” Essa é a sinopse de Gatos (Kedi, 2016), documentário turco dirigido por Ceyda Torun, que estreou nos cinemas brasileiros na última quinta-feira (13/7/2017).

O filme narra as histórias de sete gatos que vivem nas ruas de Istambul, mostrando sua relação com a cidade e a população. Os personagens humanos ouvidos por Ceyda enaltecem os gatos nos mais diversos aspectos, desde os físicos – “Eles têm uma elegância que as mulheres costumavam ter, mas perderam”, opina uma das entrevistadas, enquanto um homem diz que, em sua infância, via os gatos como super-heróis devido a suas habilidades físicas – até espirituais – um dos entrevistados atribui aos gatos sua aproximação com Deus, por conta de um marcante episódio em sua vida envolvendo um felino, e outro revela que sua vida passou a fazer sentido depois que começou a alimentar gatos de rua: “Quando um gato mia para você, é como se a vida estivesse sorrindo”. Uma mulher destaca a comunicação entre humanos e felinos: “É como se comunicar com extraterrestres; são duas espécies bem distintas e cada uma tem sua língua, mas se estabelece um diálogo em que ambas se entendem”.

Tais depoimentos são entremeados por imagens dos gatos em suas peripécias pelas ruas da cidade, pedindo comida nos restaurantes, disputando território com outros gatos ou perseguindo ratos, sendo algumas delas capturadas por câmeras na perspectiva dos felinos, além de belas imagens aéreas de Istambul filmadas por um drone que avança sobre os telhados de prédios e casas. 


Mas nós, como uma organização de proteção animal, temos ressalvas quanto ao documentário. Primeiro, ele apresenta uma visão extremamente romantizada sobre os gatos de rua, como no clássico desenho animado norte-americano do personagem Manda-Chuva. A rua é a liberdade, a casa é o confinamento. Os gatos retratados no filme são comunitários, sendo bem cuidados por proprietários ou funcionários de estabelecimentos comerciais, além de receberem carinho e afagos de transeuntes e haver potes de ração e água espalhados pela cidade, mas ainda assim esses bichos vivem na rua. E a adoção? E organizações que cuidem e encaminhem esses bichos para lares de verdade? 

Realmente, num mundo perfeito, todos os animais viveriam livres na natureza, inclusive gatos e cães. Mas, infelizmente, estamos muito distante de viver em um mundo perfeito, e as ruas das cidades muito longe de ser a natureza. O status dos gatos na Turquia é equivalente ao das vacas na Índia – existem histórias que relatam a amizade do profeta Maomé com os bichanos -, mas sabemos que a maldade humana está em todo o planeta. Mesmo na Índia, as vacas “sagradas” são exploradas e mortas para a indústria da carne, leite e couro, como inclusive mostra o obrigatório documentário Terráqueos (Earthlings, 2005). Certamente, na Turquia e outros países do globo, o amor e respeito pelos animais tampouco é uma unanimidade. Para gatos e cachorros, estar nas ruas significa estar permanentemente exposto aos riscos mais diversos de violências e acidentes. 

Além disso, em nenhum momento se fala sobre políticas públicas de cuidados para esses gatos, inclusive castração. O filme mostra ninhadas de gatos recém-nascidos como se fosse uma celebração à vida. Esses bichos estão se reproduzindo desenfreadamente, e o documentário passa a mensagem de que a crescente superpopulação de gatos seja algo natural, uma característica poética de Istambul. Ao mesmo tempo, a cidade também está crescendo em ritmo acelerado, e, sobre isso, se ouve: “Acredito que, em dois ou três anos, não haverá mais gatos por aqui”. E só. E a castração? E a adoção de gatos?


“Queria que meu documentário fosse mais como uma experiência, uma espécie de processo mental. Minha motivação era fazer o espectador sentir o mesmo que sente um cidadão de Istambul quando um gato se senta em seu colo e se deixa acariciar, te fazendo esquecer de todo o resto. De repente, você se dá conta de que não está olhando o telefone ou que interrompeu uma conversa com um amigo e se foca na interação com o gato”, disse Ceyda Torun em entrevista ao site Vice, quando questionada em relação a críticas como a que fazemos aqui sobre seu filme.

Sim, é um dos ângulos (e o mais simplista e ingênuo) a se mostrar sobre os animais de rua, mas nós, que vivenciamos diariamente uma realidade bem diferente desses mesmos bichos, em que gatos e cachorros que vivem nas ruas não recebem somente carícias dos humanos (muito pelo contrário), temos que aproveitar mais essa oportunidade para conscientizar as pessoas sobre a importância da castração e adoção responsável - no caso de gatos, em casas e apartamentos com janelas teladas e ambiente enriquecido com arranhadores, caixas, prateleiras, brinquedos etc. Se, um dia, a humanidade evoluir a ponto de todos os seres humanos respeitarem todos os animais e as ruas das metrópoles não representarem armadilhas para eles, então que passem a circular livres e sem tutores. Até lá, a realidade não é a poesia retratada em Gatos, e precisamos zelar pela segurança deles. Infelizmente.

Veja o trailer legendado.




*Paulo Furstenau é jornalista voluntário da Associação Natureza em Forma

Fotos: Divulgação

Nenhum comentário:

Postar um comentário