O que motivou este artigo foi a matéria do site Diário de Biologia dizendo que veganismo traz riscos em longo prazo. O título é: Dieta vegana pode causar graves problemas de saúde em longo prazo, se não feita corretamente. E já começa errado por aí. A matéria basicamente acusa a dieta vegetariana estrita de ser danosa à saúde. Vou resumir os absurdos contidos lá e respondo em seguida.
1. A dieta vegetariana estrita é menos saudável;
1. A dieta vegetariana estrita é menos saudável;
2. Faltam proteínas, vitaminas e minerais aos veganos;
3. O desenvolvimento do cérebro e da capacidade cognitiva se deu graças à carne.
Vamos às respostas.
Vamos às respostas.
"A dieta vegetariana estrita é menos saudável"
Gostaria de apresentar um amigo íntimo meu à autora do artigo, porque obviamente não se conhecem: chama-se fonte científica. Uma delas que gosto muito é o PubMed, que reúne uma série de artigos e papers na área da saúde. Aprecie sem moderação.
A dieta vegetariana estrita é amplamente recomendada por reduzir a incidência de doenças como câncer e doenças cardiovasculares, campeãs em causa mortis endógenas. Estudos para isso não faltam. Este estudo aqui conclui que a dieta vegetariana é útil para prevenir câncer. Aliás, se quiserem ver quilos de estudos sobre isso, escrevi este artigo aqui com diversas fontes.
Esta outra pesquisa aqui avalia a absorção de macronutrientes e o índice de inflamação dietético (dietary inflamatory index) e conclui que dietas veganas trazem melhoras no curto prazo tanto na absorção de macronutrientes quanto no índice de inflamação.
Participantes de dietas veganas, vegetarianas e piscovegetarianas tiveram todos melhoras significativas no índice de inflamação dietético quando comparados com participantes semivegetarianos em dois meses, sem diferenças em seis meses. Dados o maior impacto em macronutrientes e índice de inflamação dietético em curto prazo, a adoção e manutenção de uma dieta baseada em vegetais, assim como dietas veganas e vegetarianas deveriam ser consideradas.
E tem também as proteções contra doenças cardíacas e diabetes.
No primeiro estudo que cito aqui sobre veganismo e doenças cardíacas, metade (21) da amostra é composta por onívoros e metade (21) por veganos. Ele conclui que uma dieta vegana pode ter efeitos benéficos sobre níveis lipídicos e proteção cardiovascular.
Este outro estudo analisa várias bases de dados sobre pacientes com doenças cardíacas e câncer e conclui efeito protetivo significante, conferindo redução de 25% sobre doença cardíaca isquêmica em vegetarianos e 8% de redução na chance total de câncer. Veganos reduzem em 15% a incidência de câncer total.
Essa metanálise demonstra um efeito protetor significativo de uma dieta vegetariana versus incidência e/ou mortalidade por doença cardíaca isquêmica (-25%) e incidência de câncer total (-8%). A dieta vegana conferiu uma redução significativa do risco de câncer total (-15%).
Este estudo vai mais longe. Compara dieta vegana e dieta vegana regrada (quem come direitinho, chamado aqui de dietary portfolios) com as recomendações habituais da American Diabetes Association (ADA) e da National Cholesterol Education Program (NCEP). O resultado é que a dieta vegana é melhor que as dietas prescritas por sociedades de médicos até então sobre diabetes e doenças cardíacas.
As principais conclusões são que as dietas veganas tradicionais melhoram o controle da glicemia mais do que as dietas da ADA em indivíduos com diabetes mellitus tipo 2, enquanto indivíduos com colesterol alto apresentam melhoras lipídicas mais consistentes do que aqueles seguindo as dietas do NCEP.
Reparem no nome do estudo: veganismo é uma alternativa viável às terapias dietéticas convencionais para melhorar os lipídios sanguíneos e controle glicêmico.
Alguns estudos epidemiológicos, aliás, cairiam muito bem ao Diário de Biologia antes de criar alarde sobre riscos da dieta vegana. De fato, vivemos mais. Olha só o que diz este estudo chamado Quais os papéis da restrição calórica e qualidade dietética na promoção da longevidade saudável?
É possível que alguns efeitos benéficos sobre a saúde metabólica não se devam inteiramente à restrição calórica, mas à alta qualidade da dieta de adeptos da restrição calórica, conforme sugerido por dados coletados entre indivíduos sob dieta vegana.
Há outros estudos relacionando a menor incidência de obesidade, menores índices de estresse e ansiedade e mortalidade total. Do estudo Além da Não Ingestão de Carne, os Efeitos Saudáveis das Dietas Veganas: Resultados das Coortes Adventistas:
Dietas vegetarianas conferem proteção contra doenças cardiovasculares, fatores de risco cardiometabólicos, alguns cânceres e mortalidade total. Em comparação a dietas ovolactovegetarianas, dietas veganas parecem oferecer proteção adicional para obesidade, hipertensão, diabetes tipo 2 e mortalidade cardiovascular. Homens têm sua saúde beneficiada ainda mais que as mulheres. Dados prospectivos limitados estão disponíveis sobre dietas vegetarianas e mudança de peso corporal.
Diante desses estudos, eu realmente gostaria de saber qual é o conceito de saúde invocado pela doutora em zoologia responsável pelo site Diário de Biologia, dado que o veganismo protege contra a maior parte das causa mortis modernas. Vamos ver o que dizem os dados do relatório da OMS sobre as causa mortis:
Recomendo fortemente que acessem as fontes. Notem uma coisa: o veganismo ajuda a proteger a sua vida em todos os fatores endógenos, ou seja, tudo aquilo que é desenvolvido pelo seu corpo naturalmente ou por conta da alimentação (AVC, doença cardíaca isquêmica, hipertensão, cânceres). Só não dá para proteger de acidentes de trânsito por motivos óbvios. Mesmo a diarreia, porém, pode ter menor incidência em veganos por conta da melhora do índice de inflamação dietético que citei neste texto.
Gostaria muito de saber no que o veganismo colabora para a morte. Quero nome de doenças e dados. Porque estou aqui com os números das doenças que mais matam e a dieta vegetariana estrita protege contra elas.
Cadê os dados? Vejo muita besteira e zero fonte na postagem do Diário de Biologia, que afirma que nós juramos de pés juntos que a dieta vegetariana é saudável, enquanto “especialistas alertam dos riscos”. Especialistas assim, jogado desse jeito, vagamente e sem fontes. Bem, diante dos dados, eu posso dizer que sim, juro de pé junto.
É importante saber que, a despeito das risíveis fontes citadas pelo Diário de Biologia, a Associação Dietética Americana (ADA) recomenda a dieta vegetariana e reconhece seus benefícios. Há também estudos comentando essa recomendação, vejam se puderem. A dieta vegetariana estrita é recomendada até para a gravidez e lactação, que normalmente exige cuidados.
Além da ADA, a Sociedade Dietética do Canadá se posiciona publicamente em favor das dietas vegetarianas estritas, bem como a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), que fez um ótimo artigo cheio de fontes para cientista (de verdade) nenhum botar defeito. Quarenta e quatro fontes: e quando eu falo fonte, não estou dizendo ZAP ponto aeiou.
"Faltam proteínas, vitaminas e minerais nos veganos"
O veganismo é um produto da modernidade e só é possível recentemente. O que significa que se você for vegano, vai sim precisar suplementar B12. Esqueça esse papo de kephir, de que orgânicos têm B12 suficiente e que alimentos hoje não contêm B12 porque tratamos com inseticidas nas plantações. É balela. A OMS já soltou um relatório dizendo que em poucos anos não teremos nenhum antibiótico capaz de controlar bactérias (vamos lembrar que a pecuária usa antibióticos em larga escala para fins de produtividade, então a culpa é do seu bife, sim).
É uma guerra injusta: você faz um antibiótico em, sei lá, oito anos, e a bactéria se adapta a ele em bem menos que isso em alguns casos (e vai lá o gênio e joga isso em escala industrial em bois para vender mais carne). O que te faz pensar que um pesticida seria responsável por aniquilar a flora capaz de produzir B12?
Isso posto, sim, precisamos suplementar B12. E é isso. Finito. Não tem mais segredo. B12 você consegue em cápsulas na farmácia ou enriquecido na comida. Até leitinho de soja vem enriquecido com B12, então parem de fazer alarde. De resto, é simplesmente mentira.
Sobre cálcio, ferro e ômega 3, deixo aqui alguns vídeos didáticos do Dr. Eric Slywitch, nutrólogo (CRM SP 185.231). Lembra aquilo que eu falei sobre citar um genérico “especialistas alertam dos perigos” ser tosco? Bem, em ciência, eu preciso ter o que atacar. Preciso ter uma afirmação falseável, preciso ter a quem me dirigir.
Recomendo fortemente que assistam aos vídeos.
Proteínas. Recuso-me a acreditar que preciso falar sobre proteínas a um biólogo em pleno 2016, ainda mais no termo cheio de ideologia e vazio de significado que é o tal “proteína animal”. Seu corpo fiscaliza a origem das proteínas por acaso? Precisamos de algum aminoácido não presente em vegetais? Qual é esse aminoácido? Diferente dos felinos, nós não precisamos de taurina e creatinina externa. Também somos capazes de produzir ácido araquidônico (presente na carne) a partir do linoleico (um tipo de ômega 6). Qual é o sentido em dizer que precisamos de “proteínas animais”?
Vamos lá, aula de biologia do ensino fundamental: o alimento entra na cavidade bucal, sofre ação mecânica e é destroçado. A ptialina ou amilase salivar faz uma primeira quebra dos carboidratos. O bolo alimentar passa pela faringe, vai ao esôfago, cai no estômago. A pepsina age nas proteínas (lembrando: adultos não sintetizam renina, então parem de tomar leite, que isso é coisa de bebês) e quebra em oligopeptídeos. O bolo sofre ação da bile, que emulsifica as gorduras para, finalmente, no duodeno receber um coquetel de substâncias que continuam quebrando o alimento, entre elas, a tripsina e, adiante, a quimiotripsina. Aquelas ligações peptídicas vão para o saco e o que sobram são só os aminoácidos.
Se liga nesse fordismo ao contrário: o alimento passa por uma linha de desmontagem e, no final das contas, o que teremos são os nutrientes essenciais como monossacarídeos, ácido graxo e glicerol e os aminoácidos componentes das proteínas. Não interessa de onde eles vieram - contanto que você tenha os aminoácidos na proporção adequada, pode ficar tranquilo.
Cadê a “proteína animal”? Seu corpo não sabe da sua concepção sobre o que seja um animal e um vegetal. Ele entende de bioquímica, ao contrário de certos cientistas por aí. Ele entende de quebrar ligações peptídicas e de pegar aminoácidos: não interessa para ele se veio do feijão, que tem um aminograma parecido com as carnes, ou da carne.
Deixo aqui mais um vídeo do Dr. Slywitch, esse sobre proteínas. Não há sentido em dizer que precisamos de carne, isso é histeria coletiva.
Sobre o ômega 3, é a mesmíssima coisa: existem ótimas fontes vegetais de ômega 3, como a linhaça e a chia. O óleo de soja tem também, só evite fritar esse negócio, aliás, evite fritar qualquer coisa.
"O desenvolvimento do cérebro e da cognição se deu graças à carne"
Cada vez que alguém que se diz cientista dá uma declaração sem fontes e dados e completamente dissociada do conhecimento do nosso tempo, um neurônio (dele) tem uma morte horrível. Por favor, salvem os neurônios: um pouco de ceticismo e respeito ao próximo não fazem mal a ninguém.
A pessoa alega que a carne foi fundamental no desenvolvimento do cérebro. Em um artigo que alerta sobre os perigos do veganismo. Consegue em uma só tacada blasfemar contra a lógica e a ciência.
Vamos primeiro à ciência. É especialmente incômodo ouvir isso de biólogos, simplesmente porque isso não tem o menor sentido com o que eles mesmos dizem todo santo dia nas aulas que dão para seus alunos. Quer ver?
Como se dá, na esmagadora maioria dos casos, a “evolução”? A adaptação das espécies, que chamamos a bem grosso modo de evolução, se dá por um mecanismo de seleção natural, descrito pelo naturalista inglês Charles Darwin.
O que Darwin diz? Nas clássicas aulas sobre a evolução, há a contraposição da teoria lamarkista dos caracteres adquiridos por uso e desuso com a teoria da seleção natural de Darwin.
Bem resumidamente, é assim: Lamark acreditava que os pescoços das girafas eram grandes porque elas precisavam se esforçar para alcançar as folhas mais altas nas árvores. Esse esforço fazia o pescoço crescer (o que pode ser verdade em algum grau), e esse crescimento do pescoço era transmitido à prole. Lamark supunha que aquilo que você fizesse em vida seria transmitido aos seus filhos.
Darwin contrapôs essa ideia dizendo que na população, naturalmente, havia girafas de vários tamanhos de pescoço. Com a falta de comida, aquelas que podiam comer as folhas mais altas sobreviviam e aquelas que não tinham pescoções morriam de fome. As girafas pescoçudas, então, deixavam descendentes e é assim que a característica era transferida à geração seguinte. A característica vantajosa, então, já estava presente na girafa e foi selecionada por pressão ambiental.
O que diz o Diário de Biologia, porém? Diz que o cérebro se desenvolveu com o consumo de carne, mas não diz que não é assim que a adaptação das espécies funciona.
Ainda que a carne pudesse explicar um maior desenvolvimento do cérebro de alguém (e não explica), isso não seria transmitido à prole, já que é uma característica exógena, assim como fazer musculação pesada e ficar um brutamontes não faz o meu filho ser um rambinho. Ele tem meus genes e a pressão ambiental, boa sorte, Marvin, agora é com você.
O que pode explicar o desenvolvimento do cérebro é a caça, não a carne. A caça era uma atividade perigosa, de vida ou morte, que dependia da inteligência do humano caçador. Funcionava então como pressão ambiental de seleção dos mais aptos. Os humanos mais inteligentes conseguiam caçar e não serem caçados, deixando descendentes. Os mais sonsos morriam. Essa explicação renderia um abraço do nosso amigo Darwin.
Ah, mas você admite então que comer carne é bom, certo? Errado. Há ainda dois problemas aqui. O primeiro é que a caça não é mais um mecanismo de seleção natural, já que o homem moderno não caça. Temos um montão de atividades que desenvolvem a cognição, que incluem brincar, viver em sociedade, escrever, ir à escola, trabalhar. A caça não ajuda em nada, muito menos a carne.
Além disso, o Diário de Biologia incorreu na falácia do apelo à tradição, que é aquela que diz que porque algo foi necessário ou bom, isso deve continuar a ser feito hoje, em um cenário completamente diferente, que não impõe essa necessidade. E isso é mentira.
Em outro artigo, fiz a análise de um gene induzido por dieta vegetariana, ainda, que favorece a produção de ácido araquidônico, que desenvolve o cérebro em fetos, podem checar.
É isso aí. É assim que funciona: cada vez que alguém usar informações sensacionalistas e/ou falsas como se ciência fosse, vai passar vergonha. Espero sinceramente que a página Diário de Biologia se retrate pela matéria postada. Se o fizer, faço um artigo agradecendo. Do contrário, vou recomendar que não vejam mais as besteiras publicadas ali porque não precisamos de fontes se passando por ciência sem agir à altura.
*Eduardo Pacheco é cientista de dados, estudante de direito e ativista pelos direitos humanos e animais.
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